terça-feira, 26 de novembro de 2013


       O REGRESSO DA VELHA SENHORA


 

     Um pequeno grupo de estudantes católicos decidiu, a 18 de Março de 1901, criar, em Coimbra, um Centro Académico que servisse para formar quadrado e cerrar fileiras, em defesa dos princípios e valores da fé que professavam, face ao anticlericalismo do governo de Hintze Ribeiro, liberal e intolerante, que então atacava as ordens religiosas e ao próprio ambiente universitário, igualmente intolerante, laicista e maçónico. Teve como principal impulsionador o Dr. António Francisco Cordeiro, ao tempo aluno da Faculdade de Direito, e cuja firmeza, serenidade e coerência ficaram para sempre como exemplo a seguir. A criação do Centro passou por várias fases, tendo sido registado – a 17 de Abril de 1901 – com o nome de Centro Per Crucem ad Lucem – e, mais tarde – a 18 de Janeiro de 1903 -, como Centro Nacional Académico, para – a 20 de Janeiro de 1905 – se fixar no nome definitivo, de acordo com a recente Doutrina Social da Igreja: Centro Académico de Democracia Cristã (C.A.D.C.).

     Como disse um dos seus primeiros e mais marcantes presidentes, o Dr. Alberto Dinis da Fonseca: Se 18 de Março de 1901 foi a data do nascimento – 18 de Janeiro de 1903, a data do seu Baptismo, assim como 20 de Janeiro de 1905 é a data da sua Confirmação.

     Mas com a implantação da República em 1910, o C.A.D.C. vê a sua sede saqueada e encerrada. Só reabre dois anos depois, iniciando-se nessa data a publicação do jornal O Imparcial que durou até 1919. Em 1922 sai o primeiro número da revista Estudos que se publica, sem qualquer interrupção, até 1970.

     Tinha – tem – o C.A.D.C. um programa ambicioso. Disse-o o Doutor Gonçalves Cerejeira numa das suas famosas Cartas aos Novos publicada no nº 45 da revista Estudos e mais tarde reunidas em volume autónomo: O programa da vossa casa (a casa-mãe dos novos capitães de Deus) resume-se em três palavras: piedade, estudo e acção – e uma vida inteira a pô-lo em prática não chega para o realizar plenamente. Três simples palavras, cujo significado total não se pode esgotar numa vida mortal.

              Mas este programa entusiasmou gerações do século passado e fez do C.A.D.C. e da revista Estudos um excepcional pólo de irradiação da cultura católica, com projecção nacional e internacional. O extraordinário número e a elevada qualidade de permutas que a revista tinha com jornais e revistas nacionais e estrangeiras, além das obras que eram enviadas à redacção para crítica, permitia aos estudantes, que frequentavam a sede na Couraça de Lisboa, o acesso a uma riquíssima e actualizada biblioteca que dificilmente encontrariam noutro local, mesmo na própria Universidade. Era também um espaço de tertúlia e de debate livre de ideias. É ainda de realçar a sua intensa acção de apoio social, no meio coimbrão, pondo em prática a Doutrina Social da Igreja. Porém, nos anos sessenta, sobretudo fruto das chamadas lutas académicas, o C.A.D.C. atravessou algumas convulsões internas, vindo a suspender as suas actividades em 1970.

     Em 2001, nos dias 17 e 18 de Março, muitos dos antigos membros da velha casa, a que se juntaram alguns convidados – no total cerca de 450 – participaram num congresso que pretendia assinalar a data da fundação de este notável centro católico – “ O CADC na vida da Igreja e da Sociedade portuguesa” – e que foi o ponto de arranque para a revitalização da instituição que a 8 de Dezembro viu os seus sócios eleger uma nova direcção e o lançamento do primeiro número da nova série da revista Estudos.

     É o nº 10 de esta nova série – que abarca os anos de 2008 a 2013 – cuja publicação, por motivos que agora não colhem, se atrasou, que está aqui presente. Nela participo, jubilosamente, com dois artigos: O Meu Amigo Chesterton – no qual relato a minha forte ligação a essa figura inesquecível que urge ler e reler nos tempos que ora correm – e Cristofobia Contemporânea – breve análise da campanha anticristã, e sobretudo anticatólica, que o mundo moderno vem desenvolvendo, praticamente já a céu aberto, através dos meios de comunicação social e de vários intelectuais. No nosso emblema está a Cruz que muitos nos querem tirar. Em vão. É que mesmo o que a insulta é porque a vê ou a tem escondida e tem medo que outros a vejam. Porque a cruz nunca se esconde. É como a luz que não se apaga. É como o amor que não fenece.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013


                     A SOLIDÃO E O SILÊNCIO


 

     Escrever é um permanente diálogo com o silêncio. Quando escrevemos também falamos, mas falamos com o silêncio que ora está sentado a nosso lado, tão discreto que quase não damos por ele, ora vagueia pela sala, ausente e distraído, como se não estivesse presente ou nem sequer existisse. E, no entanto, é ele que preenche este vazio, que o relógio a espaços assinala, em badaladas breves que o tempo, envergonhado e arrependido, logo rouba e guarda, sem delas quase darmos conta, perdidas que foram no silêncio que não chegaram sequer a acordar.

     Estar vivo é ter a noção do silêncio. E é por isso que o doente é quem mais sente o silêncio, desejando-o para se encontrar consigo mesmo ou trocando-o levianamente pelo barulho das conversas, o ruído das pessoas, a algazarra das visitas que na ânsia de falar com o doente acabam por falar apenas umas com as outras, deixando em silêncio, mas sem silêncio, o verdadeiro paciente. Fala-se demais e num tom de voz cada vez mais alto, para abafar a palavra e o pensamento alheios, com frases aguçadas e agrestes, que magoam e ferem, deixando profundas marcas que o tempo dificilmente sara e a memória raramente esquece.

     Também o amor é feito de silêncios. Da cumplicidade dos olhares que não falam, dos gestos sem ruído, dos constantes sorrisos que se trocam. Não necessitam de muitas palavras nem de elevar o tom de voz. Fala-se quase em surdina, como se de segredo permanente se tratasse, pois basta estar presente e as poucas frases que se dizem vêm sempre embrulhadas em ternura e atadas com laços de carinho. O verdadeiro amor é o que se descobre no silêncio e que nele arde lentamente, enquanto o tempo envelhece e passa. Pouco se alimenta das palavras, quase sempre desnecessárias, insuficientes e supérfluas. É um contínuo segredo, que ambos conhecem e guardam, mas de que não se fala nem desvenda a mais ninguém.

     É também o silêncio um modo de enganar o tempo. De entrar no passado às escondidas, sem ninguém ver, como quem entra no sótão das recordações e novamente descobre o que julgava perdido, num regresso ao passado em que somos, simultaneamente, actores e espectadores, vendo passar sob os nossos olhos o filme da nossa vida, que já não admite cortes nem emendas. É uma viagem que fazemos a sós, com as horas trocadas e o calendário ao contrário, jogando com o próprio tempo que nos amarra pelos pés ao presente e deixa que o coração e o pensamento se percam no passado.

     É ainda o silêncio que liga e religa as amizades. Quantas vezes se dispersam os amigos, pela fortuna da vida e pela roda do tempo, ficando anos sem se ver nem falar, mas ainda presos entre si pelo silêncio que guarda e traz de novo as recordações dos anos que fugiram, dos encontros que não voltam, das conversas que não esquecem. É o silêncio do passado que continuamente nos bate à porta da memória e nos abre o coração a um novo reencontro, real ou fictício, em que os amigos de novo se vêm e se falam, ou recordam a sós, com saudades do futuro, esse passado, silencioso mas presente, onde plantaram e viram crescer a árvore da amizade. É feito de silêncios o nosso cofre de amigos e o segredo que o abre, que só com eles partilhamos, tanto pode ser um simples telefonema, uma carta inesperada, um encontro fortuito que, num ápice, recupera os silêncios perdidos e o tempo que passou.

     Já lá vai o tempo em que as pessoas entravam nas igrejas em busca do silêncio. Do silêncio que descia da abóbada, percorria as naves e se sentava nos bancos. Do silêncio que reconfortava as almas e sossegava os corpos, longe, embora perto, do bulício das ruas, da agitação do trabalho, do ruído das gentes. Do silêncio sagrado que a todos acolhia, o crente e o descrente, o fiel e o incrédulo. Eram então as igrejas verdadeiros oásis, oásis de silêncio neste deserto da vida demasiado ruidosa e barulhenta.

     Confundem também alguns o silêncio com a solidão. Mas o silêncio não é a solidão. O silêncio fala; a solidão cala. A solidão é viver completamente só, sem passado nem futuro e sem ter a quem escutar, a quem escrever, a quem falar. É viver perdido e, mais do que isso, esquecido do mundo, das pessoas e de si próprio. Viver artificialmente, porque a vida é sempre uma conversa que se tem com outro, real ou imaginário, que nos fala e nos responde em voz alta ou em silêncio. A solidão é o prenúncio da morte; o silêncio é o prefácio da vida.  É do silêncio que tudo nasce; é na solidão que tudo acaba.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013


FRONTALIDADE  E  BOA EDUCAÇÃO


 
 
 


     Adquiri, há tempos, as actas de um colóquio, realizado em Paris  no início dos anos noventa do século passado, que versava o tema em epígrafe. Mais de uma dúzia de sábios debatia um conjunto de questões que se põem hoje a todo o homem sério e honesto sobre as regras de boa educação que desde a Paideia da velha Grécia à Humanitas da Roma antiga, passando pelos contributos renascentistas e de outros períodos históricos, chegaram até nós, e as correntes individualistas que, sobretudo após Maio de 68 e a sua infantil e contraditória expressão é proibido proibir, subverteram essas mesmas normas e criaram a falsa noção de sinceridade ou de frontalidade que tanto adorna hoje a desbocada conversa de alguns adultos que não passam, afinal, de adolescentes mal criados.

     Todos sabemos que a chamada boa educação é uma questão de berço; de criação, diz-se em português de lei. E a cultura pode, e deve, torná-la ainda mais fina e requintada. Nada perde com isso; pelo contrário, só tem a ganhar. Um homem culto é, naturalmente, um ser superior, também, e sobretudo, porque é extremamente bem educado. Aliás, as normas de boa educação devem fazer parte integrante da sua formação.

     Por isso, seria bom que de novo se ensinassem nas escolas públicas, como outrora era norma nos colégios privados, noções de cortesia, de civilidade ou de urbanidade, de bem maior utilidade prática para os nossos alunos do que algumas disciplinas esotéricas que a ninguém aproveitam e ninguém entende. Desde sempre a boa pedagogia soube defender a necessidade de incutir nos jovens as correctas normas de sã convivência social que revelassem respeito e consideração pelo próximo, evitando, assim, a linguagem agressiva e insultuosa que hoje parece ser regra e norma comum, fruto da moderna frontalidade, que os faz regressar à selva profunda, com os urros e grunhidos das manifestações a que, lamentavelmente, já estamos habituados.

     Mas não são apenas os mais novos que devem ser alvo de uma educação correcta que os torne gente civilizada. Parece que mais necessitam alguns adultos que bem ganhavam em ler, com mão diurna e nocturna, as cartas de Cícero que, com toda clareza, nos transmitem o que já os romanos sabiam: distinguir a linguagem do camponês –rusticus – da do homem bem educado que vivia na cidade -  urbanus. Conheciam, por isso, a cortesia – comitas – e a arte de ser amável, ou seja, a humanitas. Pois não lhes era então estranha a vida de sociedade – a urbanitas -, porque possuíam aquilo a que os atenienses chamavam a elegância da boa convivência.

     Mas hoje parece que a grosseria, a boçalidade e a má criação são a regra de oiro de alguns homens públicos, apoiados e até instigados por jornalistas de igual teor. A linguagem avinhada tornou-se, nalguns casos, a anormal norma com que bolsam insultos e revelam em toda a sua plenitude a falta de nível, de cultura, de inteligência e, acima de tudo, de educação. Portugal esteve, há pouco mais de um quarto de século, à beira de ficar com uma linguagem de caserna. Parece que agora caminha a passos largos para uma linguagem de taberna.

domingo, 13 de outubro de 2013


1936, ANO DA FÉ


 
 

     13 de Outubro de 2013, cidade espanhola de Tarragona. São beatificados 522 mártires, ou seja, mais de meio milhar de católicos assassinados in odium fidei, pelos republicanos e “rojos” espanhóis, em plena Guerra Civil e na zona que eles próprios controlavam, através do terror e da maior perseguição religiosa que ocorreu, em todo o século vinte, na Península Ibérica. Feroz perseguição religiosa que, para qualquer historiador sério, começou em 1931 mas ganhou foros de verdadeiro holocausto católico a partir de 1936.

     O historiador inglês Paul Johnson afirmou que “ para os republicanos a Igreja católica era o alvo principal do ódio…” Para G. Jackson, “ os primeiros três meses da guerra foram o período de máximo terror na zona republicana…. Os sacerdotes… foram as principais vítimas de puro gangsterismo.” Stantley G. Payne chegou a dizer que “ a perseguição à Igreja católica foi a maior jamais vista na Europa ocidental, inclusive nos momentos mais duros da Revolução Francesa”. E acrescenta: “ Durante a Guerra Civil o único grupo marcado para o extermínio foi o clero”. H. Thomas diz-nos também que “ possivelmente em nenhuma época da história da Europa, e provavelmente do mundo, se manifestou um ódio tão apaixonado contra a religião e tudo o que com ela está relacionado”.

     De facto, esta sistemática perseguição religiosa que, segundo outro autor – G. Hermet – reveste um carácter de verdadeiro massacre, não incidiu apenas sobre bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas, leigos comprometidos na acção pastoral ou simples fiéis que foram sumariamente executados ou vítimas de inauditos suplícios, por não renunciarem à sua fé, acreditando até à morte no seu único e verdadeiro Deus, o Deus católico, uno e trino. Mas foi também um ataque organizado contra a tradição e os símbolos religiosos, a destruição de bens culturais de valor incalculável, como bibliotecas e obras de arte, o incêndio de igrejas, a destruição de monumentos religiosos, como o monumento ao Sagrado Coração de Jesus, em Madrid – previamente “fuzilado”, antes de ser dinamitado -, e até, macabramente, a profanação de sepulturas e de cemitérios. O ódio cego à Igreja católica queria substituir a expressão de F. Nietzche, “ Deus morreu”, pela de Tatiana Goritcheva, “ Deus foi executado”.

     Em Toledo, o poeta sul-africano Roy Campbell, nesse ano da fé de 1936, viu morrer como mártires os seus amigos carmelitas que lhe tinham confiado a guarda dos preciosos manuscritos de S. João da Cruz, que mais tarde traduziu admiravelmente para inglês. Por toda a Espanha, sob o governo da Frente Popular – formado por socialistas e comunistas -, foram milhares os que tombaram nobremente, num autêntico holocausto católico, gritando, Viva Cristo Rei!, como os “cristeros” no México nos anos vinte – 1926-1929 - também eles vítimas do mesmo ódio à fé.

     E é ouvindo esse grito arrepiante, por entre o contínuo metralhar que tudo mata e destrói, esse grito que brada aos céus, que me vêm à memória os versos de Paul Claudel – do poema Aos mártires espanhóis -, como salmos que se rezam, como contas de um rosário:

     Onze bispos, dezasseis mil sacerdotes massacrados e nem uma só apostasia.

     Ah! Oxalá pudesse dar, como tú, em voz alta, um claro testemunho, no esplendor do meio-dia.

     1936 é, pois, um verdadeiro Ano da Fé. Que convém lembrar, quando se encerra o actual  Ano da Fé instituído pelo Papa emérito Bento XVI. Que convém lembrar, quando em várias partes do mundo, sobretudo em África e na Ásia, os católicos continuam a ser vítimas indefesas de esse cobarde ódio à fé. Perante o beneplácito da comunidade internacional que, muitas vezes, também o incita activamente atacando a Igreja e os seus legítimos representantes, através de mentiras e de falsidades. Cobardemente. Porque sabem que, tal como na Guerra Civil espanhola, os católicos que morrem vítimas de perseguição perdoam aos seus inimigos e, no seu último alento, ainda rezam por eles.


 

domingo, 6 de outubro de 2013


 
          
REGRESSO ÀS AULAS


 

                                                                Antigamente a escola era risonha e franca…

                                                                                                                          Acácio Antunes

     No autocarro, sentou-se ao meu lado um senhor com uma cara tão triste, tão triste, que só de olhar para ele dava vontade de chorar. E foi nesse estado de ânimo que entrei em casa, com a imagem de esse velho de bigode murcho a matraquear-me a cabeça e as lágrimas, só de me lembrar dele, a saltar-me dos olhos, como se tivesse vindo de um velório. Tinha acabado de tirar o casaco, quando senti bater à porta. Estremeci, quase sem querer, imaginando que o diacho do velho me tinha seguido, para se certificar do meu estado de ânimo e da minha capacidade de choro.

     Tive sorte. Em vez da tristeza ambulante, saiu-me na rifa um velho companheiro do saudoso Liceu D. João III, alegre e folgazão, que vinha tirar dois dedos de conversa e saber, de forma naturalmente discreta, se ainda tinha aquela garrafita de Porto, ou alguma alma gémea, que tão boa companhia nos fizera na semana passada.

     Foi um bom remédio. A tristeza foi desaparecendo à medida que se esvaziava a garrafa e ele contava histórias do tempo do liceu. Dos colegas, dos contínuos mas, sobretudo, dos professores. O professor de História era um senhor já de idade, que escrevia artigos para um jornal da terra, e dava pelo nome de um conhecido escritor italiano: o célebre autor de As minhas prisões. A rapaziada não o levava muito a sério e nos pontos escritos, sabendo de antemão que nunca os lia, aproveitava para fazer relatos de futebol, contar anedotas ou inventar histórias do arco-da-velha. À cautela, lá ia respondendo, sempre de forma vaga e difusa, à primeira questão, sobretudo na primeira página. Mas sem se esforçar muito.

     Ora sucedeu, contava entusiasmado o meu amigo, que um dia o pai foi chamado ao reitor. Na sala encontrava-se também o professor de História que se pôs a dizer que não admitia que os alunos gozassem com ele e lhe faltassem ao respeito. Dera-se o caso, verdadeiramente inédito, de ter lido todo o ponto do meu velho amigo do liceu. O desgraçado tinha respondido à segunda questão – “ Descreve as cerimónias do Feudalismo” – relatando, com grande vivacidade e abundante cópia de pormenor, o último jogo da Académica no Estádio Municipal. Achou o mestre – e muito provavelmente com razão – que a resposta era completamente inadequada e verdadeiramente anacrónica. Mas muito mais do que isso, considerou-a uma ofensa. O pai do infeliz aluno, concordando embora com o sábio professor, lá foi desculpando o rapaz, dizendo que se calhar não era só ele que respondia assim, que lesse o mestre também as outras provas… Que não! Teimava o professor. Que as tinha lido todas e só ele, e apenas ele, cometera essa afronta! E o pai do meu amigo lá tornava e retornava a pedir desculpa, acrescentando que tivesse a certeza que o seu filho não voltaria a tomar essa atitude.

     À cautela, quando chegou a casa, deu-se o mestre ao cuidado de ir, de facto, ler os outros pontos dos rapazes. E não é que então, e só então, é que se deu conta do que há anos vinham fazendo?

     Mas ainda havia mais. Vivia-se então na época de ouro das chamadas orais. O professor pegava na caderneta, esse pequeno instrumento de suplício, folheava-a, pausadamente, parando de quando em quando para ver a reacção do auditório, e disparava, de repente, um número ou um nome, que era motivo de sobressalto no visado e de alívio e de satisfação nos restantes. Ora este distraído mestre costumava anotar nas folhas da caderneta o nome da pessoa amiga que lhe recomendava os rapazes. Não se esquecia, assim, de quem lhe tinha feito o pedido e sempre era mais fácil para dar as notas no final do período. Porém, um belo dia, para espanto de toda a turma, acertando embora no número, enganou-se no nome, trocando as linhas, e, sem se aperceber do erro, disse numa voz fanhosa que se ouviu em toda a sala: “Vem hoje à lição o número cinco, Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Arcebispo-Bispo-Conde, D. Ernesto!”
 
 

domingo, 29 de setembro de 2013

O VALOR DA MEMORABILIA



 

     No final dos anos cinquenta do século passado foi publicado em França um livro de Maurice Rheims sobre o coleccionismo que rapidamente se tornou famoso. Intitulava-se A estranha vida dos objectos e ia ao encontro do gosto de coleccionar, do bichinho de guardar peças de memorabilia ou simples recordações de viagens que, quase como uma doença, entrou nas melhores famílias e passou, com naturalidade, a fazer parte da vida de quase todos nós, transformando as nossas casas em álbuns de recordações.

     Também a minha casa é um álbum. Espalhadas por móveis e paredes há recordações de viagens e de amigos, de velhos parentes que quase não conheci e de figuras históricas que do passado vieram ter comigo para assim penetrar alegres nos umbrais do futuro. Fazemo-nos boa companhia. E ora falo com uns, ora converso com outros, como se os visitasse na sua própria casa e não na minha. Têm todos o seu cantinho, o seu espaço próprio, a sua zona residencial. Quando lá chego, não bato à porta nem peço licença para entrar, mas sinto-me como se vivesse noutro lugar e noutro tempo: sinto mesmo no ar um microclima, carregado de sentimentos e de profundas emoções.

     A minha casa é um álbum. Viro a esquina do corredor como quem desfolha páginas, pois cada parede traz consigo miríades de imagens que se escondem por detrás de uma fotografia, de um relógio, de um prato, de uma gravura antiga. E em cima de cada móvel há objectos que contam histórias sem cessar, lembram rostos que não esquecem, paisagens deslumbrantes, viagens sem ter fim.

     A minha casa é como um álbum vitoriano. Tenho necessidade de povoar todo o meu espaço de objectos que me digam alguma coisa, que embora inertes tenham vida, que tragam dentro de si alguma história e passem serões de inverno ou tardes cálidas de verão a falar para mim, a fazer-me companhia. Quando olho para todos eles, espalhados quase ao acaso por móveis e recantos, lembro-me de pessoas e de locais, vêm-me à memória dias precisos e horas certas, como se tivesse sido há pouco, momentos antes de entrar em casa. É que a nossa vida é um mosaico, feito de pedaços que só nós próprios sabemos encaixar.

     A minha casa é um álbum. Precioso álbum que só eu conheço e de que sei o significado. Precioso álbum que guardo a todo o custo, como criança adulta que não quer perder tantos sonhos passados e futuros. Mas mais do que dormir com ele, bem agarrado, debaixo dos lençóis, para que ninguém mo tire, vivo com ele e dentro dele. Tanto faço parte dele como ele faz parte de mim. A minha casa é um álbum.
 
 

domingo, 22 de setembro de 2013

O Prazer da Leitura





     Há amigos que estão sempre disponíveis, esperam por nós a qualquer hora, andam connosco na rua sem vergonha e muitas vezes, quando, sentados, os trazemos ao colo como se fossem crianças, somos nós que adormecemos, e não eles. São os livros. Mal entro em casa, sinto-os a cumprimentar-me das estantes, com olhar grave e pose doutoral, os autores de teses, pesadas e maçadoras, que tão úteis são para as noites de insónia; com um sorriso discreto, como quem reencontra um velho amigo, os escritores clássicos que contam com nova graça as velhas histórias e, por isso, se lêem   e relêem sempre com prazer; a esbracejar, querendo saltar da prateleira e vir a correr ao meu encontro, as mais recentes aquisições, desejosas de entabular conversa, de me dar notícias frescas, de me pôr a par das últimas novidades.
     Deixo-os a todos e sigo. Sobre a mesa de trabalho espera-me, com uma fidelidade canina, o livro que ando a ler e que sinto vibrar de alegria quando lhe pego na lombada e lhe viro as páginas, afagando-o com amizade e ternura.
     Lembro-me, então, da tese de Marshall McLuhan, o famoso autor de A Galáxia de Gutenberg que, nos idos de 1962,  prenunciava a morte antecipada do velho e fiel livro que, teimosa e continuamente, nos acompanha ao virar das páginas de este livro maior que todos lemos e em que todos participamos que é o Livro da Vida. Hoje até para os mais pequenos há falsos livros, coloridos e com música, que os bebés folheiam no banho, a fingir que já lêem, como os adultos fazem, mesmo os analfabetos.
     Tive um amigo que vivia numa biblioteca. Ou melhor, fez da sua casa uma autêntica biblioteca tal era a profusão de estantes e de livros que o acompanhava, e nos acompanhava, pela casa fora. As suas conversas começavam num livro ou nele acabavam irremediavelmente. Conversas que tinham o condão de fazer parar o tempo, de tirar a corda aos relógios que ficavam –também eles – de ouvido à escuta e olhos bem abertos, sequiosos de esse discurso animado e encantatório que nos seduzia e cultivava permanentemente.
     Havia nele uma relação de fidelidade amorosa com os livros que conhecia como ninguém. Mas uma das suas grandes paixões era coleccionar livros de armar ou de lingueta que procurava com todo o afã quando visitava as livrarias ou adquiria em lojas especializadas que descobriu, sobretudo em Londres, e de que era freguês habitual. Iluminava-se-lhe o rosto, com um sorriso de menino grande, brilhando-lhe os olhos de contentamento, quando mos abria com renovado cuidado e carinho. Era como se fosse de novo criança, com o prazer a escorregar-lhe por entre os dedos.
     No Natal, a casa era um presépio vivo em livros de armar abertos por toda a parte. Livros de armar com presépios de papel, que se espalhavam por todo o lado: nas mesas, nas prateleiras, em cima das estantes e até pendurados em candeeiros. Era como entrar directamente na gruta de Belém, uma gruta de papel dentro de livros, abertos de par em par. Um verdadeiro festim para os olhos. Porque é pelos olhos que vemos e é pelos olhos que lemos.  
    


sexta-feira, 13 de setembro de 2013

UM ESCRITOR PROIBIDO


 


     Peço ao leitor, benevolente e amigo, que encoste a porta e não acenda a luz, pois vou falar-lhe hoje de um escritor proibido. Proibido apenas entre nós, em nome de uma cultura pequenina e rasteira, que mal se vê porque não cresce e não cresce para que não se veja. Falo de um notável escritor romeno, praticamente desconhecido pelos nossos diligentes e apressados intelectuais, autor de um livro inesquecível e verdadeiramente arrebatador: O Diário da Felicidade, de Nicolae Steinhardt (1912-1989).

     A felicidade, descobriu-a Nicolae Steinhardt no seu lugar de origem, dentro de si mesmo, naquilo a que Ollé-Laprune chamou as fontes da paz intelectual, quando viajava de prisão em prisão, no universo concentracionário romeno do período comunista. E relata-nos essa viagem, sem rumo nem destino, em que nunca perdeu a dignidade, nem traiu companheiros, nem amigos, nem guardou rancor, nem alimentou qualquer espírito de vingança. Num diário escrito, naturalmente, a posteriori, pois nunca lhe foi permitido o uso de papel e de lápis. Num diário sem sequência cronológica, apenas de memória, mas de uma riqueza cultural e humana verdadeiramente admirável.

     É certo que não há uma norma para a redacção de um diário, mas o livro de Nicolae Steinhardt é também uma autêntica história da cultura em que se cruzam livros, escritores, poetas, músicos, artistas, não só romenos mas de toda a cultura e que servem de tema e viva discussão entre aqueles que habitam transitoriamente a mesma cela. Espantosa cultura que o Autor revela e no-la transmite serenamente como se estivesse ainda sentado na carcomida tarimba de uma triste e miserável prisão. Uma obra digna e comovente, a que não faltam traços de fino humor, que a superior personalidade do escritor romeno deixa por vezes escapar por entre um sorriso maroto que lhe escorrega dos olhos e foge até nós por entre as grades da própria cela.

     Pois esta obra, meu caro leitor atento e amigo, foi naturalmente apreendida e sofreu nova redacção, pacientemente refeita pelo escritor romeno, de origem judia, que na prisão se converteu ao Cristianismo, tendo recolhido mais tarde a um convento ortodoxo. Aí lhe apreendeu a Securitate o manuscrito que, entretanto, já tinha sido enviado a bom recato.

     A sua publicação, em 1991, na Roménia, obteve um êxito extraordinário com uma tiragem de 200.00 exemplares. Traduzido imediatamente em várias línguas ( francês, italiano, hebraico, húngaro, grego, castelhano, português (Brasil), inglês, etc. ) viu as suas edições esgotarem-se rapidamente, tornando-se, obviamente, numa obra de referência da cultura romena e ocidental. Nicolae Steinhardt pertenceu a uma geração de grandes intelectuais romenos, bem conhecidos no Ocidente, como Constantin Noica, Mircea Eliade, Emil Cioran, Eugen Ionesco, Vintila Horia, Virgil Bulat e tantos outros.

     Entre nós, amigo comum, conseguiu há anos, através do Instituto Cultural Romeno em Lisboa, obter do Mosteiro de Rohia, que detinha os direitos de autor do escritor romeno, autorização para a publicação da obra numa conhecida editora portuguesa. Mas o director da colecção a que se destinava O Diário da Felicidade, um Importante de Melo, quando viu que Nicolae Steinhardt era um escritor de superior cultura e, por isso e só por isso, tinha sido vítima da perseguição comunista, recuou corajosamente. Ficámos, assim, sem uma edição portuguesa.

     Resta, ao leitor interessado e amigo, a edição brasileira, se a conseguir adquirir, pois está praticamente esgotada. Aquando da sua edição, foi O Diário da Felicidade considerado o livro do ano no Brasil.  Naturalmente. Unanimemente elogiado pela crítica internacional que nele viu uma verdadeira obra-prima ou, no dizer do crítico romeno Dan Chelaru, “ um livro contemporâneo de Deus”, foi, pelo Importante de Melo, proibido entre nós.

     Assim vai a cultura em Portugal.
 
 

domingo, 25 de agosto de 2013

Tempo de Mediocracia


 
Há épocas em que, pela vontade de Deus ou pelos desmandos dos homens, cai sobre as nações o flagelo da mediocridade. A tradição, que busca no passado as raízes do futuro, enfraquece. A dignidade nacional, por não encontrar quem a defenda, emigra. E a Pátria, ferida e exausta, cansada de enxovalhos e de calúnias, agoniza lentamente. É então que os homens acomodatícios e medíocres alcançam o poder, convertendo-se o Estado num mediocracia.

     Nesta, inverte-se a natural hierarquia de valores, falseiam-se nomes, desvirtuam-se conceitos. A sinceridade passa a ser uma idiotice; a verdade, uma loucura; a justiça, um suicídio; a admiração, uma imprudência; a paixão, uma ingenuidade; o idealismo, uma cretinice; a virtude, uma estupidez. O país tem de ser visto através das lentes de quem o governa e ai de quem tenha o arroubo do génio, a virtude do santo, a coragem do herói!

     É que os medíocres – estes ou quaisquer outros -  não têm voz, mas eco; não falam, repetem; não pensam, plagiam;  não vivem, vegetam; e nem sequer são sombra, mas penumbra. Cépticos, porque são incapazes de acreditar; modestos, porque não têm de que se vangloriar; invejosos, porque a sua vulgaridade não pode suscitar a inveja dos demais. São incapazes de servir um ideal, de tomar uma iniciativa, de sonhar com o futuro. Têm medo que os apontem a dedo, que profiram o seu nome, que alguém refira a sua existência. E vivem como contrabandistas, fazendo contrabando da própria vida.

     Acéfalos, pensam pela cabeça dos outros que seguem servilmente. Acomodatícios, mudam de opinião tantas vezes quantas as necessárias. Desonestos, mentem pública e descaradamente, vendendo se for preciso a própria honra ou fechando-a à chave, para que ninguém saiba que têm aquilo que de facto não possuem. Às vezes, esforçam-se por vestir a capa da inteligência ou por calçar os sapatos do bom senso. Em vão. São medíocres da cabeça até aos pés e não há vestuário que lhes disfarce as mazelas do corpo ou lhes distraia a pequenez do espírito.

     Mas se um dia, para desgraça das nações, conquistam o poder, logo assumem ares solenes e grandiloquentes, com discursos longos, repletos de frases rebuscadas, num tom de voz pretensamente autoritário e forte, com que intentam esconder o imenso vazio que os consome. E dizem e desdizem, e fazem e desfazem, e mandam e desmandam.

     Combatem o idealismo que não entendem, a verdade que não alcançam, a inteligência que não possuem. Deitam pela borda fora o passado que os esmaga, o presente que os repele, a História que os acusa. Fogem às responsabilidades que não assumem, às promessas que não cumprem, ao futuro que não constroem. Vivem das palavras que mastigam, das mentiras que consomem, das asneiras que vomitam. E julgam-se as luminárias deste século, os heróis da nossa Pátria, os salvadores da Humanidade.

     E ainda por cima querem que o futuro lhes reserve uma página, como se a História falasse dos medíocres.

sábado, 17 de agosto de 2013

MEDITAÇÃO SOBRE O SILÊNCIO

                                                                        
 
     Escrever sobre o silêncio é, de certo modo, um contra-senso. Menor, porém, do que falar. Porque escrever é muitas vezes refúgio de quem não quer comunicar com o próximo mas consigo mesmo, de quem não pretende dirigir-se a um público amontoado em praças repletas, mas conversar silenciosamente com o outro eu, livre de olhares indiscretos, de vozes discrepantes, de remoques grosseiros. De si para si. Sozinho e silenciosamente.

     Porque pode falar-se às multidões, indiferente ao arruído de fundo que lhes é peculiar. Mas a comunicação entre dois seres, distintos ou indistintos, entre mim e o meu amigo leitor, ou entre a minha inteligência e a minha vontade, o meu cérebro e o meu coração, requer como condimento necessário e imprescindível o silêncio. Superior silêncio, porquanto aos homens falta a única virtude que os animais possuem: a de saber calar – ou não poder falar.

     O psitacismo, a verborreia, a eloquência fácil, a retórica pedante, as bolas de sabão oratórias, a fraseologia rebuscada, as poses rococó, os discursos, as conferências, as palestras. Palavras, palavras, sempre palavras. Que moem, que cansam, que saturam. As mais das vezes, só palavras. Ocas e vazias, nada mais. Mas o homem gosta. Porque vive, alimenta-se, nutre-se de palavras. Como do pão e do vinho. E por isso só os doentes, os que estão de dieta, é que se alimentam do silêncio. Muito embora o considerem iguaria de qualidade superior ou talvez por isso mesmo.

     E como encontrará o homem o lugar onde mora o silêncio, para fugir ao palavreado constante e inútil que continuamente lhe azucrina os ouvidos, lhe fere o cérebro, lhe viola a inteligência? Esse local secreto de que falaram os antigos, foi visitado pelos modernos e agora ninguém conhece nem faz tenção de conhecer. O silêncio não tem moradia própria. Qualquer local lhe basta para reclinar sua cabeça e ouvir nossas confidências. E quando menos se espera, encontramo-lo ao dobrar uma esquina, ao subir para o autocarro, ao entrar em casa. De manhã. À tarde. Durante a noite. Pois, quer queiramos quer não, o silêncio persegue-nos continuamente, pedindo-nos para matar as palavras desnecessárias e improfícuas que saem aos repelões de nossa boca, tantas vezes incapaz de se fechar, de se calar, de colar os pedaços de saliva que uniram frases que talvez servissem para desunir os homens.

     Porque o silêncio quer andar connosco, viver connosco, acompanhar-nos a todos os locais, sem receio do incomodativo barulho das pessoas vulgares que, por medíocres, gostam de se pavonear, de dar nas vistas, de chamar a atenção, até mesmo do sossegado e calmo silêncio. É que o silêncio deve, por natural direito, habitar dentro de nós. Não na periferia do nosso ser. Não na epiderme. Mas no cerne da alma, para que nunca nos deixe. Não há maior desgraça do que ser o homem atacado de psitacismo, transformando-se num simples e palrador papagaio, descendo, assim, ao mesmo nível dos animais, mas julgando-se superior aos próprios deuses.

     Quem melhor fala é quem se cala, porque é o silêncio divino e é divina a sua linguagem. Deus fala sempre em silêncio ou, se quiserdes, através do silêncio. Neste tempo de tanta palavra lançada ao vento como pedra enraivecida, saibamos também nós, serena e confiadamente, escutar o silêncio. Divino silêncio.  

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A Menina do Futuro

A MENINA DO FUTURO


     É fim de tarde. Há menos gente na praia. Vejo um jovem casal com uma menina com um chapéu de palha e uma fitinha vermelha. Parece que está a começar a andar. Segura-a o pai pelos bracitos, não tira a mãe os olhos dela. E lá vai ela, devagarinho, pezito aqui, pezito ali, pezito aqui, pezito ali, pezito aqui, pezito ali… Ai!, catrapus! Caiu na areia. Foi-se o chapéu, roubou-o o vento. Lá vem a mãe toda aflita, não vá chorar a pequenita. Ficou sentada no chão da praia. Feliz da vida, toda contente. Brinca com a areia, sorri para a gente. Levanta-a o pai, com todo o jeito. Põe-lhe o chapéu de novo a mãe, compõe-lhe a fita. E lá vai ela pela praia fora, toda contente, toda catita, pezito aqui, pezito ali, pezito aqui, pezito ali…



     Vejo-a de longe a andar na praia. E fico a pensar que esta menina é o futuro que nós levamos também pela mão. Que nós levamos, sem darmos conta. Que nós levamos pelo tempo fora, como a menina que vai além, toda bonita, toda contente, pezito aqui, pezito ali, pezito aqui, pezito ali…

domingo, 28 de julho de 2013

À Sombra de Tomaz de Figueiredo

  
 

     Dizem que se deve beber muita água nestes dias em que o calor aperta e o Sol queima mais. Que a cultura é como água fresca e cristalina, a jorrar das sombreadas fontes, e que tão bem nos sabe quando o mercúrio trepa nos termómetros, muito lesto e gaiteiro, a pedir roupas leves e serenidade e calma no andar, espaçado e lento, mais recolhido à sombra do que ao Sol. Tem a cultura a pureza da água que gulosamente se bebe e que percorre veloz o nosso corpo numa viagem de vida e de prazer que mata a sede e o cansaço afasta. Se temos de beber muita água, temos também de ter a cultura sempre à mão, cristal de primeira água, levando-a connosco para nos dessedentar da estupidez que nos abafa, da ignorância que ferve, da burrice que queima.
     Sigo, por isso, religiosamente a prescrição médica e vou ter com Tomaz de Figueiredo em busca de essa água límpida e pura que sai a borbotar dos seus livros e que bebo em copázios de meio quartilho, daqueles antigos, que na minha infância no Minho vi, e me levam, com ele e nele, de volta a essas terras de boa gente e sólidos ares que a peste da politiquice ainda não destruiu de todo.
     Quem não gostava de passar uns dias numa casa antiga e bem portuguesa, de mesa farta e de amizade fraterna e franca, conversadeira e descuidada, sem curar do tempo, que só por algumas velhas fisgas das portas, a medo, se escoa, também ele aí amesendado, nessa casa que tão bem conhece, e onde parece que a espaço vemos embalado nessa cadeira de baloiço, estimada herança do avô de quem todos se lembram e de quem todos falam? Venha daí comigo, leitor atento e amigo, e não se preocupe com a bagagem, o transporte, ou a própria viagem que pode parecer cansativa e longa, pois, como vai ver, nada custa e bem agradável se torna. Basta-lhe apenas pegar num livro, ou melhor, em dois, já que não creio, e com toda a honestidade o digo, que depois de ler o primeiro não fique aguado por não ler o segundo.
     Mas não pense o leitor que A Toca do Lobo, pois é esta obra que tenho entre mãos é – e aqui desdigo o meu amigo Tomaz – um “romance estático”, isto é, parado. Faça o favor de ler comigo e dê-se conta da vida que percorre as suas páginas, das aventuras em que nos faz participar, do permanente contacto com a Natureza em que estamos envolvidos, levados sempre, de escantilhão, pelo Autor. Logo a abrir, nesta pequena citação: “ Caçar, pescar, escrever no intervalo algumas páginas de memórias – ferro em brasa… -, ler algum livro ou reler algum antigo: reler e reler o Padre António Vieira, seu professor da Fé e seu professor de Indignação. De mês a mês, algum capítulo mais do livro que tanto ambicionava acabar – que tinha de acabar! – sobre a lição de homem livre que através a vida e obra o excelso jesuíta legara. A leitura do Padre António Vieira levava-o até a ranger os dentes de entusiamo e de fúria. (Prenderam-se os pastores e soltaram-se os lobos, e não tem Cristo quem acuda pelo seu rebanho. – Se eu escarrara vermelho e me deixaram falar claro, dera por bem empregado o sangue. – Até a esperança se nos tolhe, que é o último alívio que ninguém tirou, na mais triste fortuna, aos mais desafortunados. – Sobre as obrigações do vassalo, tenho as que devo aos mortos e as que devo aos vivos. – Os que têm nome e baptismo de cristãos, muitos o receberam sem saber o que recebiam.- Como temo que a babilónia Europeia seja Babilónia na confusão, não o sendo nos muros nem nos defensores. – É necessário governarmo-nos com a espada sempre na cinta e com a balança na mão, pesando os poderes de todos os príncipes e fiando-nos só do próprio. – Das felicidades que Deus tem aparelhadas a Portugal estou sempre certo, com a mesma firmeza, mas, antes delas, não sei se nos quererá Deus purificar com algum açoite, pois nós não o fazemos com a emenda.)
     “Que espantoso capitão de almas, o Padre António Vieira!”
     E que espantoso escritor, no verdadeiro sentido da palavra, de causar permanentemente espanto – e alegria – não é também Tomaz de Figueiredo! Peço-lhe desculpa, porém, de com esta citação gorda lhe ter interrompido a leitura de A Toca do Lobo. Voltemos à velha casa que respira por dentro os ares sadios e fortes de uma criação nobre e antiga, cujas histórias não podemos deixar de ouvir, trazidas continuamente à memória do escritor.  E não digo que nos sentemos, porque Tomaz de Figueiredo não nos dá tréguas nas aventuras em que nos leva a reboque, nas caçadas por montes e vales e na pesca de essa belíssima truta com quem eu tanto gostava- e se calhar também o meu amigo leitor – de ter uma saborosa conversa, à mesa, no prato, nem que fosse de esmalte e o garfo de ferro, a condizer…
     Quando acabar a leitura de este romance, busque logo outro do mesmo criador de estas figuras que, a partir de agora, fazem também parte de todos nós: Uma noite na Toca do Lobo.  E não se amofine se por lá aparecer a prima D. Maria do Socorro, com o seu cosmorama. Entre no jogo e participe na conversa que a prima, velha solteirona, nos traz, a propósito das famosas vistas do cosmorama que o falecido mano mercara em Paris. Também eu um dia, em Madrid, encontrei num antiquário um cosmorama. E, depois de ter contado e recontado o dinheiro que levava, avancei, todo lesto, para mercar o objecto, desejoso de com ele entrar daí a dias no velho Café Aviz, aos Restauradores, e dizer, ufano, ao Tomaz que tinha, como a prima do Diogo, um cosmorama. Mas lembrou-me o coração que Tomaz de Figueiredo já estava, há vários anos, a ver outros cosmoramas. “Não lho prometia a tia Mariana, pouco antes de morrer? (Olha que tens de ir para o Céu, nem que seja preciso eu vir de lá puxar-te por um braço!)
     E o cosmorama ficou na Calle Arenal.




sábado, 6 de julho de 2013

As Novas Índias


               

 


     A viagem é sempre uma descoberta e a descoberta implica sempre uma viagem. Viagem iniciática, reservada apenas a alguns, poucos e escolhidos, sejam pessoas ou nações que percebem e se apercebem das verdadeiras razões da descoberta e por isso estão para além do que os sentidos comuns vêem ou a razão humana entende. Há sempre algo de misterioso e de sagrado na descoberta, no descobrimento de novas terras, novas gentes e, mais do que isso, novas estrelas e céus, que é como quem diz, novos tempos e espaços.

     O Infante D. Henrique, Mestre da Ordem de Cristo, herdeira da Ordem dos Templários, o manuelino e toda a sua riquíssima simbologia, a Nau e o Graal, de que nos fala Dalila Pereira da Costa, ou a descoberta do caminho, do verdadeiro e único caminho marítimo para a Índia, dos irmãos Gama ( Vasco e Paulo) ligados à Ordem de Santiago, e cuja frota, a frota dos arcanjos, deixa o Tejo a 8 de Julho de 1497, tudo tem profundo carácter simbólico.

     Vejamos apenas o simbolismo da descoberta do caminho marítimo para a Índia, ambição suprema do monarca português. Vasco comanda a nau S. Gabriel, Paulo da Gama, a S. Rafael, Nicolau Coelho, a Bérrio, talvez uma caravela, e Gonçalo Nunes, um navio de víveres que devia ser queimado no decorrer da viagem.  A frota era assim constituída por três arcanjos: S. Rafael, S. Gabriel e Bérrio, o arcanjo inominado, pois a palavra bérrio, entretanto caída em desuso, significava então arcanjo.

     O arcanjo Gabriel, cujo nome significa “fortaleza de Deus”, é o guardião do tesouro celeste, o Anjo da Redenção e o supremo mensageiro de Deus. É o Anjo da Anunciação e do Nascimento, pois anunciou à Virgem que seria a Mãe do Salvador. Deu o nome à nau que anunciaria a descoberta do novo caminho que daria origem também a uma nova era: a era pós-gâmica, como lhe chamou o historiador britânico Arnold Toynbee.

     O arcanjo Rafael, cujo nome significa “remédio de Deus”, é o chefe dos anjos custódios e o anjo custódio – isto é, o anjo da guarda – de toda a humanidade. Está iconograficamente associado a Tobias, a quem devolve a vista, e assume muitas vezes a imagem de um peregrino com o bordão e a vieira características. É ele que abre os olhos aos navegadores portugueses, ensina o caminho e os acompanha na viagem peregrinação, viagem simbólica que lança a ponte entre o mundo que ora acaba e outro que aos poucos já desperta. Misto de cavaleiro medieval e de homem moderno que satisfez a grande aspiração de El-Rei D. Manuel I.

     Mais de cinco séculos depois há agora outras índias à nossa espera. E eu vou também, embarcado nas largas asas dos arcanjos à procura da alma portuguesa que está hoje de novo pelo mundo em pedaços repartida. E entro, à sombra dos arcanjos, nas ondas de este mar, tumultuoso e traiçoeiro, que os velhos do Restelo, que são agora garotos e fedelhos, não querem que seja, como outrora, nosso e português. Definitivamente, não fico, comodamente na praia a ver os outros partir. Mas singro neste mar, sempre pelas mãos protectoras dos arcanjos, neste mar alteroso, de vagas fortes e carnívoras, que tudo comem e levam; neste mar que é também um mar interior, feito de trabalhos sem fim e de sacrifícios sem conta, olhos postos no gajeiro que lá do alto perscruta o vasto horizonte que a sua experimentada vista alcança, com o coração desejoso e alvoraçado de poder gritar de vez a todos nós: Cabo da Boa Esperança!

     É neste mar que eu navego; é nestes barcos que eu vou.
 
 

quinta-feira, 27 de junho de 2013

À PORTA DE SANTA CRUZ

                                                                        


 Parece que é, de novo, à porta da velha Igreja de Santa Cruz que me encontro com Monsenhor Augusto Nunes Pereira. Figura inesquecível da cultura coimbrã, com o seu ar quase tímido de quem pede desculpa pelo seu muito saber no domínio da arte, artista ele próprio de sólidos recursos, moderno pioneiro, entre nós, da nobre arte da xilografia, pouco, infelizmente, deixou impresso para lição e proveito dos seus muitos admiradores e amigos. Mas uma obra – que na altura comentei no velho O Primeiro de Janeiro, com a amizade agradecida do Autor – merece que aqui se sente, ao nosso lado, nesta tertúlia a que um bom café não faltará, por certo, como o antigo e saboroso da animada e velha A Brasileira. Refiro-me, naturalmente, a Do Cadeiral de Santa Cruz que, já neste século, mereceu uma segunda edição a cargo da Câmara Municipal de Coimbra.

     Esta obra é enriquecida por um notável conjunto de riquíssimas xilogravuras que reproduzem os motivos que lhe servem de estudo e que nos dão conta do valor de artista exímio que foi Monsenhor Augusto Nunes Pereira. Discípulo de Pietro Parigi (1892-1990), um autêntico mestre da xilografia italiana de “Novecento”, artista florentino que foi amigo de notáveis escritores como Piero Bargellini, Carlo Betocchi ou Nicola Nisi. E também ele de uma modéstia fora do vulgar e de uma grande riqueza espiritual, possuía Pietro Parigi a força escultórica de um Donatello e de um Miguel Ângelo, sendo única a sua arte de xilógrafo, e, por isso, foi considerado ao mesmo tempo um clássico e um moderno sem igual.

     Mas neste livro sobressai ainda a sólida cultura iconológica do seu Autor, interessado e atento leitor de Erwin Panofsky – tantas conversas tivemos sobre este assunto - , que era então para muitos um completo desconhecido. Através dele, e da distinção que soube fazer na prática entre iconografia e iconologia, veio, mais uma vez, chamar a atenção para a importância cultural e artística do Catolicismo que nunca ficou fechado entre quatro paredes mas deu sempre sentido e forma à nossa cultura, porque extravasou para o quotidiano que dele se alimenta e dele vive, em mil modos e formas que todos conhecem, mas alguns tentam, por vezes, teimosamente escamotear e esconder.

     Desde Aby Warburg, professor da Universidade de Hamburgo e mais tarde em Londres, e sobretudo Erwin Panofsky, que o estudo e análise das imagens adquiriu um valor excepcional. Panofsky parte do princípio de que numa obra de arte a forma não pode separar-se do conteúdo, não é um mero suporte visual, tem um sentido que a ultrapassa e que se manifesta a três níveis: 1) a forma material; 2) a ideia convencional e o 3)  significado intrínseco. O primeiro, pré-iconográfico, serve para identificar as formas puras (por exemplo, um homem pregado numa cruz); o segundo, iconográfico, refere o conteúdo secundário ou convencional que nos permite identificar as imagens, histórias ou alegorias por meio de fontes literárias ( nesta caso o Evangelho); por último, o valor iconológico, que Panofsky defende como essencial, trata do conteúdo intrínseco da obra, enquanto comporta valores simbólicos. Ora, é precisamente isto que nos dá Monsenhor Augusto Nunes Pereira nesta obra, ao descrever e analisar cuidadosamente os vários elementos que compõem o cadeiral de Santa Cruz.

     Para tornar compreensível a iconografia, Panofsky deu uma vez o seguinte exemplo: coloquemo-nos na situação de um bosquímano que contempla um quadro da Última Ceia. Não vê nada mais do que uma refeição em comum que parece representar algo de importante. Para compreender o sentido do quadro o nativo deverá familiarizar-se com a narrativa evangélica. Ora quando vemos obras de arte cujos temas ultrapassam o âmbito das ideias que constituem a formação intelectual média actual, todos somos bosquímanos.

     É natural que o leitor, atento e amigo, faça agora uma pausa para sorver mais um pouco de café que, por minha culpa, minha própria culpa, ficou a arrefecer indevidamente na respectiva chávena. Para me penitenciar e aligeirar este breve arrazoado, assim o terminando de vez, peço licença para lhe contar um episódio que ocorreu com Monsenhor Augusto Nunes Pereira e é bem revelador do seu espírito franciscano. Quando se encontrava de férias, foi a sua casa alvo de uma visita, não solicitada previamente, de dois membros do Sindicato de Ladrões, Larápios, Gatunos e demais Ofícios Correlativos que lhe levaram um baú que continha, não só os apetrechos da sua arte de xilografia, mas várias obras já concluídas e outras em fase de conclusão. Provavelmente porque não tinham realizado o curso final com bom aproveitamento, os membros do Sindicato tanto barulho fizeram, primeiro a arrombar a porta e, depois, a transportar o baú, que os vizinhos, assim alertados, avisaram a polícia. Fugiram os ladrões, deixando na rua o pesado baú e, avisado pelas autoridades, regressou sobressaltado a casa o nosso monsenhor. Um polícia mais curioso reparou, porém, que o baú tinha escrito na tampa a palavra RASA e perguntou ao nosso querido e santo amigo o que significava tal palavra, Ao que este, de modo tímido, respondeu: - Recomendado a Santo António!