quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A PRESENÇA DE CAMÕES


 
     Na segunda metade do século passado o antigo Ministério da Educação Nacional criou uma colecção de pequenos volumes, mas de sólida e ampla divulgação, a que deu o título de “Colecção Educativa”. E com todo o rigor porque era exactamente isso que ela era. Foram publicados, até ao início dos anos setenta, mais de cem volumes, sobre temas diversos, a cargo de grandes escritores e de reputados especialistas nas matérias versadas. Eis senão quando umas adultas e descompassadas bestas, para usarmos a saborosa e apropriada terminologia do falecido Camilo Castelo Branco, decidiram mandar queimar todos os exemplares da referida colecção que faziam parte, e bem, das bibliotecas escolares. Foram assim pasto das chamas A Floresta Portuguesa, de M. Gomes Guerreiro; O Sobreiro, de Carlos Alberto da Paixão Correia; A Resina, de Manuel Martins da Cruz; O Pomar, de Manuel Eugénio Galvão de Melo e Mota; A Vinha, de Alfredo Baptista; O Jardim, de Maria de Lourdes Duarte Amaral; A Horta, de Francisco Dias Antunes. Entre muitos outros, sem esquecer A Capoeira de Joaninha, de Duílio João Coelho Marques e, naturalmente, A Protecção da Natureza, de C. M. Baeta Neves. O resultado de essa sanha incendiária deu no que deu e ainda hoje está à vista de todos. Quando o único livro que eventualmente podia ser alvo de chamas, descuidadas e atrevidas, repito, descuidadas e atrevidas, era Geometria ao Canto da Lareira, 2 vols., de Manuel Joaquim de Sousa Ventura.

     Participaram directamente nesta colecção grandes nomes da cultura portuguesa como Vitorino Nemésio, José Régio, Ester de Lemos, Maria de Lourdes Belchior Pontes, António G. Matoso, João Ameal, José Osório de Oliveira, Ana Hatherly, A. de Lucena e Vale, Américo Cortez Pinto, José Hermano Saraiva e tantos, tantos outros. Embora tenha sido alvo de uma medida obscurantista e anti-cultural é ainda possível encontrar alguns de estes livros em alfarrabistas, valendo a pena a sua aquisição e, sobretudo, a sua leitura sossegada e calma, mesmo se um ou outro estiver aparentemente desactualizado. Constituem verdadeiras e autênticas jóias e peças únicas de uma imperdível colecção. Fazem parte da minha estante reservada.

     E entre eles encontra-se um Camões, de Henrique Barrilaro Ruas, sempre de boa leitura. Clara e luminosa iniciação a Luís de Camões, constitui este livro um pequeno – grande – ensaio biográfico do nosso maior Poeta que urge ler ou reler nos momentos mais difíceis da nossa História. Assim foi entre 1580 e 1640; e assim é cada vez mais necessário ainda agora. De este livro, perdido seguramente na voragem da confusão dos tempos e dos incêndios ateados – a primeira versão é de 1973 -, saiu uma nova edição em 1999, na Grifo. É daí que transcrevo parte da nota final, que não consta da primeira edição.

     Os Lusíadas passaram a ser como que a alma de Portugal. Houve soldados que os perderam em Alcácer. Mas os Cantos nunca mais seriam um signo de catástrofe. Fonte de patriotismo, de coragem e de esperança, largamente contribuíram para a Restauração. E, hoje, é neles que o Povo Português se pode rever ao ter de recusar a absorção num Continente sem alma. A Comunidade de Povos Lusófonos aí está, para cantar Os Lusíadas numa só voz.

     Foi também sobre a obra de Luís de Camões que Henrique Barrilaro Ruas, com o seu olhar puro de menino grande, se debruçou. Sobre a lírica – Camões e o Amor – e a épica, dando-nos uma edição comentada e anotada de Os Lusíadas que, naturalmente sem desprimor pelas muitas e valiosas edições que já existem, deve figurar entre as melhores, pelo cuidado posto no comentário apropriado, pelo rigor das notas e pela qualidade dos temas desenvolvidos, de quem, não tendo embora o estatuto de especialista, ardia, em fogo que só aparentemente se não via, num amor apaixonado por Camões e a Cultura Portuguesa.

     De 12 a 17 de Junho de 1983 realizou-se na cidade de Ponta Delgada, nos Açores, e integrado na XVIIª Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura, um colóquio sobre Camões e o Renascimento, que correspondeu à IVª Reunião Internacional de Camonistas, e cujas actas foram publicadas no ano seguinte, por iniciativa da Universidade dos Açores. Na altura, um apressado jornalista televisivo, fazendo alarde da sua vasta cultura, disse que tinha ocorrido nesta cidade açoriana uma importante reunião internacional de camionistas. O meu velho e saudoso amigo Aníbal Pinto de Castro, que nela participou activamente, não concordou liminarmente com o teor da notícia e confidenciou-me, em tom magoado, que havia uma substancial distinção entre um camionista, indivíduo que conduz veículos pesados, e um camonista, honesto e profícuo estudioso da vida e da obra de Luís de Camões. Sem querer entrar em polémicas desnecessárias ou suscitar comentários levianos de algum leitor simpático mas distraído, tenho, no entanto, a leve suspeita  de que o antigo e ilustre director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra é bem capaz de ter razão.

     Podem, por isso, não valorizar os camionistas o contributo de Henrique Barrilaro Ruas para o bom estudo camoniano. Mas não creio que qualquer honesto camonista o não tenha, como eu, em alta consideração.       

 

 

 

1 comentário:

  1. A instâncias do autor do Blog Nonas cheguei aqui. Gostei do que li. Parabéns. Serei leitora assídua.
    Maria

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