sábado, 23 de fevereiro de 2013

A ÚLTIMA LIÇÃO


                                          

               


     Há dias, quando estava a ler na minha biblioteca, adormeci profundamente. Acordei, sobressaltado, com um barulho estranho. E vi que nela estava instalada uma perfeita confusão, com livros fora do sítio, livros no chão, livros amontoados. Prosadores e poetas, filósofos e teólogos. Era, em suma, toda a cultura europeia que ao longo de anos consegui guardar zelosamente e agora, sem mais nem menos, me esvaziava as estantes e corria, veloz, atropelando-se uns aos outros, para junto de umas prateleiras, na minha estante reservada, onde estão as obras do Cardeal Joseph Ratzinger/Bento XVI. Parecia que todos queriam ouvir a sua voz, escutar a sua palavra, colher os seus ensinamentos, fixar para sempre a sua última lição. E, no meio de toda esta febril agitação, chegaram-me aos ouvidos os primeiros acordes do Concerto para piano e orquestra nº20 em Ré menor K . 466 de Wolfgang Amadeus Mozart. Nem as minhas músicas ficaram sossegadas. Também elas vieram juntar-se aos livros e aos seus autores, certamente com a mesma intenção.

     Impossível referir todos os autores que quiseram escutar a palavra do maior teólogo alemão de todos os tempos, como lhe chama o seu biógrafo Peter Seewald. Chega-me aos ouvidos um murmúrio de vozes, como se todos desejassem, quase ao mesmo tempo, fazer perguntas e colher lições, mas logo vem um silêncio respeitoso, quebrado suavemente pela voz serena e sabedora de um dos maiores intelectuais dos últimos séculos que assim se sobrepõe a tudo e a todos e todos escutam como discípulos gulosos da lição do seu querido e velho mestre. Mas não são apenas escritores. Descobri, no meio de tantas obras que se empilhavam em direcção às prateleiras da minha estante reservada, uma especial e fora do vulgar: um álbum de um pintor. E era esse pintor que eu via agora com o livro na mão. Por iniciativa da sede italiana, em Milão, de The Foundation of Improving Understanding of the Arts ( Fondazione per Coltivare la Comprensione dele Arti) foi editado em 1998 um álbum que reunia de modo “involuntário”, o pintor americano William Congdon (1912-1998) e o Cardeal Joseph Ratzinger: O sábado na história. As pinturas religiosas do primeiro, sobre este tema, eram antecedidas de cinco meditações sobre a Semana Santa, da autoria do cardeal alemão. Constituem ambas, ainda hoje, um bom motivo para ligarmos a arte moderna e a boa e sólida teologia. Era essa obra que sobressaia a todas as outras.

     Mas eis que reparo na presença de um grupo de intelectuais contemporâneos que, na sequência da brilhante intervenção do Papa Bento XVI na Universidade de Ratisbona, a 2 de Setembro de 2006, decidiu colaborar numa obra colectiva, em sua homenagem, e significativamente intitulada Deus salve a razão. A edição original saiu em Itália, na conhecida editora Cantagalli de Siena – belíssima Siena -, em 2007. Rapidamente traduzida em francês e em castelhano, foi  enriquecida nesta última com a colaboração de novos autores. Entre nós, como de costume, não houve qualquer edição. Apenas silêncio, escuridão e nada mais. Ora são esses autores, de variadas proveniências, que vejo atentos e desejosos de, uma vez mais, sem mácula nem medo, com todo o respeito e admiração, mesmo quando discordam, marcar de novo presença: o filósofo materialista espanhol Gustavo Bueno, da Universidade de Oviedo; o egípcio Wael Farouq, professor de língua árabe na Universidade Americana do Cairo e de ciências islâmicas na Faculdade copto-católica; o filósofo e ensaísta francês André Glucksmann; o catedrático de Literatura Espanhola da Universidade de Alcalá de Henares, Jon Juaristi, convertido ao judaísmo; o prestigiado intelectual palestiniano Sari Nusseibeth, professor de Filosofia e Reitor da Universidade árabe  Al-Quds de Jerusalém; o sacerdote católico Javier Prades, catedrático de Teologia Dogmática da Faculdade de Teologia San Dámaso de Madrid; o filósofo alemão, antigo professor de várias universidades, Robert Spaemann; e o conhecido jurista de origem judaica,  J. H. H. Weiler, natural da África do Sul e professor da Universidade de Nova Iorque.

     Como fundo, continuo a ouvir música de Mozart. Vejo, entretanto, que se agita um livro sobre o amontoado de todos os outros. É um livro de John Henry Newman, do cardeal inglês recentemente beatificado por Bento XVI: a famosa Carta ao Duque de Norfolk. E sinto que se estabelece, de imediato, um vivo diálogo entre o Cardeal Joseph Ratzinger/Bento XVI e o cardeal oratoriano, antigo e importante elemento do chamado Movimento de Oxford. Todos sabemos do que trata esta obra. É, ainda hoje, um indispensável ponto de partida para o estudo, sério e honesto, da doutrina da consciência, tema particularmente caro a este Papa e sobre o qual escreveu muitas e luminosas páginas, prenhes de actualidade e que merecem, por isso, ser de novo lidas e meditadas. E, sobretudo, servem também para melhor compreender a sua vida e as recentes atitudes do Santo Padre.

     O concerto entra agora no último andamento. Não sei quem está ao piano, se é o próprio Mozart, se é o próprio Papa. Nisto, salta um livro da prateleira. Faz-se um silêncio profundo. É a voz de Bento XVI que se ouve. É, de certeza, a sua última lição.

     Na oração, em cada época da história, o homem considera-se a si mesmo e à sua situação diante de Deus, a partir de Deus e em vista de Deus, e experimenta que é criatura carente de ajuda, incapaz de alcançar sozinho o cumprimento da própria existência e da própria esperança. O filósofo Ludwig Wittgenstein recordava que “rezar significa sentir que o sentido do mundo está fora do mundo “. Na dinâmica de esta relação com quem dá sentido à existência, com Deus, a oração tem uma das suas expressões típicas no gesto de se pôr de joelhos. É um gesto que contém em si uma ambivalência radical: com efeito, posso ser obrigado a pôr-me de joelhos – condição de indigência e de escravidão – mas posso também inclinar-me espontaneamente, declarando o meu limite e, portanto, o facto de que tenho necessidade do Outro. A Ele declaro que sou frágil, necessitado, “pecador”.

     Bento XVI podia lembrar de novo, como o fizera noutro texto, o que disse o poeta e dramaturgo francês Paul Claudel, quando, velho e cansado, visitou a Itália, sendo visível a sua dificuldade em locomover-se: ”Custa-me a andar, mas ainda posso ajoelhar”.

     Já não oiço a música de Mozart. Está um rádio ligado. É fim de tarde. Rezam o terço em Fátima. O sacerdote pede para rezarmos pelo Papa que vai recolher a um convento. Vou rezando baixinho e pedindo a este sábio e santo Papa, que dentro em breve ficará em solidão plena a sós com Deus, reze também por mim e pelos meus, reze por todos nós.
 
                                                            

 

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