domingo, 3 de março de 2013

VAMPIROS, MORCEGOS E PESADELOS

    



 Já lá vai o tempo em que uma livraria era um lugar seguro. Agora, não é assim. Pode até ser um local extremamente perigoso. Há dias entrei numa e vi-me imediatamente rodeado de vampiros. Melhor dito, de livros de vampiros, sobre vampiros e com vampiros na capa que me olhavam, atentos e sequiosos. Um jovem funcionário, extremamente simpático, avançou, lesto, na minha direcção e perguntou-me, solicito, se precisava de ajuda. Pareceu-me que, ao sorrir, pôs um dente de fora e, sugestionado pela abundância de vampiros que me olhavam gulosos da prateleira, levei instintivamente a mão direita ao pescoço, em jeito de atabalhoada protecção, disfarçando rapidamente como quem está a compor o colarinho da camisa. Mal ganhei para o susto.
     Pensava eu, na minha ingenuidade, que os vampiros só atacavam de noite ou, na melhor das hipóteses, ao lusco-fusco, nos dias nublados. Mas eis que agora, provavelmente com legislação nova e mais actualizada, atacam a qualquer hora, desde as nove da manhã às nove da noite, e sem pausa para almoço. São um verdadeiro perigo. Tanto mais que pode qualquer um  levá-los para casa, nalguns casos até com desconto de dez por cento, e aí, sim, longe de olhares indiscretos, actuar em conformidade. Ao que nós chegámos: aos vampiros em saldo, aos vampiros volantes, aos vampiros de bolso!
     A necessidade de uma literatura de fortes emoções, que nos deixe, literalmente, sem pinga de sangue, não é um bom barómetro cultural. Forte emoção tínhamos nós, noutro tempo, quando, depois de juntarmos as nossas sempre magras economias, podíamos comprar um livro de um autor de boa prosa e sólida cultura que levávamos, já em animada conversa, como velhos e inseparáveis amigos, para o aconchego do lar, entusiasmados com a dupla aquisição: de leitura e de recheio da biblioteca. Ou então aquele livro de arte, duplamente pesado, no preço e no tamanho, só possível no Natal ou no nosso aniversário, se por acaso o tivéssemos insinuado sub-repticiamente a algum familiar ou amigo mais chegado. Agora, temos a emoção a martelo, ou melhor, ao dente!
     Esta literatura de pesadelo é, por norma, demasiado pesada: os vampiros são quase sempre de muito alimento. São páginas e páginas tintas de sangue, de gritos de horror, de fugas apressadas, de muitas e sofisticadas ideias idiotas, quando não perfeitamente imbecis. Saltando de capítulo em capítulo e até de livro em livro, surgem verdadeiras famílias vampirescas, a que não são imunes as próprias crianças que, desde que já tenham dentes com alguma consistência, podem também fazer parte integrante de essa imensa família que alastra pelas livrarias e começa a viver, refastelada, nas melhores bibliotecas públicas e em muitas privadas.
     Tinha ideia que a relação com os livros era mais uma coisa de morcegos do que de vampiros. Na Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra há uma simpática colónia de morcegos que todos os dias, ou melhor, todas as noites, quando as portas do vetusto edifício estão encerradas para o público, avança, sem dó nem piedade,  para a bicharada – que ousa atacar as preciosas obras que aí estão guardadas – e dela faz o seu lauto e suculento jantar. Tem a protecção do Senhor Director e não consta que estejam sindicalizados, pois não há notícias de greves e, muito menos, de greves de fome. É caso para dizer: morcegos, sim; vampiros, não.
     Neste momento já deve estar o leitor amigo a pensar que sou só a favor da literatura séria, daquela que supostamente se ensina nas escolas e de que os críticos dizem bem, sem nunca a terem lido. Nada disso.  Também há bons livros, e até muito bons, na chamada literatura de pesadelo. E é precisamente um de esses livros que está aqui, ao meu lado, a agitar-se todo irrequieto para que eu o leia de novo: O homem que era quinta-feira, de G. K. Chesterton. Muitos, por certo, acharão estranho que eu coloque esta obra na literatura de pesadelo, mas foi o próprio autor que assim o fez ao integrar no título do livro Um pesadelo, embora muitos editores não apresentem o nome completo da obra: O homem que era quinta-feira: um pesadelo.
     Mas este é um pesadelo admirável, cheio de graça, de encanto, de fino humor como só Chesterton nos sabe dar. É um livro para ler em qualquer dia da semana, de manhã, à tarde, à noite, em tempo de férias, mas sobretudo quando em casa ou no emprego tivermos aqueles pesadelos reais que só uma boa leitura de este livro rapidamente supera.
      Este livro foi dedicado, com um longo poema, ao escritor inglês E. C. Bentley, velho companheiro de escola, e adaptado ao teatro pela cunhada do próprio Chesterton, tendo este redigido um prefácio que antecede a edição da versão teatral de esta novela. Foi colocado pela primeira vez na mão dos leitores em 1908 e, desde então, tem suscitado um interesse entusiástico, sempre renovado em todas as gerações, bem visível nas inúmeras traduções e contínuas edições. Mesmo entre nós, desde que foi publicado no final da primeira metade do século passado – curiosamente numa colecção intitulada Biblioteca dos Humoristas – até aos dias de hoje, tem colhido naturalmente as boas graças dos leitores, arrastados alegre e jovialmente pela espantosa imaginação e notável capacidade de efabulação do seu autor.
     A história que, tal como o enredo de um bom romance policial, não se pode contar, senão perdia a graça de que está imbuído da primeira à última página, tem dado origem a várias interpretações, embora Chesterton deixe subtilmente pistas para encontrarmos, no emaranhado da confusão deliciosa que a novela nos transmite, a solução correcta. É como se entrássemos num jogo passado num labirinto e tivéssemos de descobrir, ao mesmo tempo, como jogar sem cometer qualquer falha, à medida que procurávamos a saída vitoriosa. É um pesadelo que apetece ter, que apetece ler, que apetece sonhar. Sempre de uma actualidade feroz. E com G. K. Chesterton a olhar divertido para nós e a sorrir prazenteiro.


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