quinta-feira, 27 de junho de 2013

À PORTA DE SANTA CRUZ

                                                                        


 Parece que é, de novo, à porta da velha Igreja de Santa Cruz que me encontro com Monsenhor Augusto Nunes Pereira. Figura inesquecível da cultura coimbrã, com o seu ar quase tímido de quem pede desculpa pelo seu muito saber no domínio da arte, artista ele próprio de sólidos recursos, moderno pioneiro, entre nós, da nobre arte da xilografia, pouco, infelizmente, deixou impresso para lição e proveito dos seus muitos admiradores e amigos. Mas uma obra – que na altura comentei no velho O Primeiro de Janeiro, com a amizade agradecida do Autor – merece que aqui se sente, ao nosso lado, nesta tertúlia a que um bom café não faltará, por certo, como o antigo e saboroso da animada e velha A Brasileira. Refiro-me, naturalmente, a Do Cadeiral de Santa Cruz que, já neste século, mereceu uma segunda edição a cargo da Câmara Municipal de Coimbra.

     Esta obra é enriquecida por um notável conjunto de riquíssimas xilogravuras que reproduzem os motivos que lhe servem de estudo e que nos dão conta do valor de artista exímio que foi Monsenhor Augusto Nunes Pereira. Discípulo de Pietro Parigi (1892-1990), um autêntico mestre da xilografia italiana de “Novecento”, artista florentino que foi amigo de notáveis escritores como Piero Bargellini, Carlo Betocchi ou Nicola Nisi. E também ele de uma modéstia fora do vulgar e de uma grande riqueza espiritual, possuía Pietro Parigi a força escultórica de um Donatello e de um Miguel Ângelo, sendo única a sua arte de xilógrafo, e, por isso, foi considerado ao mesmo tempo um clássico e um moderno sem igual.

     Mas neste livro sobressai ainda a sólida cultura iconológica do seu Autor, interessado e atento leitor de Erwin Panofsky – tantas conversas tivemos sobre este assunto - , que era então para muitos um completo desconhecido. Através dele, e da distinção que soube fazer na prática entre iconografia e iconologia, veio, mais uma vez, chamar a atenção para a importância cultural e artística do Catolicismo que nunca ficou fechado entre quatro paredes mas deu sempre sentido e forma à nossa cultura, porque extravasou para o quotidiano que dele se alimenta e dele vive, em mil modos e formas que todos conhecem, mas alguns tentam, por vezes, teimosamente escamotear e esconder.

     Desde Aby Warburg, professor da Universidade de Hamburgo e mais tarde em Londres, e sobretudo Erwin Panofsky, que o estudo e análise das imagens adquiriu um valor excepcional. Panofsky parte do princípio de que numa obra de arte a forma não pode separar-se do conteúdo, não é um mero suporte visual, tem um sentido que a ultrapassa e que se manifesta a três níveis: 1) a forma material; 2) a ideia convencional e o 3)  significado intrínseco. O primeiro, pré-iconográfico, serve para identificar as formas puras (por exemplo, um homem pregado numa cruz); o segundo, iconográfico, refere o conteúdo secundário ou convencional que nos permite identificar as imagens, histórias ou alegorias por meio de fontes literárias ( nesta caso o Evangelho); por último, o valor iconológico, que Panofsky defende como essencial, trata do conteúdo intrínseco da obra, enquanto comporta valores simbólicos. Ora, é precisamente isto que nos dá Monsenhor Augusto Nunes Pereira nesta obra, ao descrever e analisar cuidadosamente os vários elementos que compõem o cadeiral de Santa Cruz.

     Para tornar compreensível a iconografia, Panofsky deu uma vez o seguinte exemplo: coloquemo-nos na situação de um bosquímano que contempla um quadro da Última Ceia. Não vê nada mais do que uma refeição em comum que parece representar algo de importante. Para compreender o sentido do quadro o nativo deverá familiarizar-se com a narrativa evangélica. Ora quando vemos obras de arte cujos temas ultrapassam o âmbito das ideias que constituem a formação intelectual média actual, todos somos bosquímanos.

     É natural que o leitor, atento e amigo, faça agora uma pausa para sorver mais um pouco de café que, por minha culpa, minha própria culpa, ficou a arrefecer indevidamente na respectiva chávena. Para me penitenciar e aligeirar este breve arrazoado, assim o terminando de vez, peço licença para lhe contar um episódio que ocorreu com Monsenhor Augusto Nunes Pereira e é bem revelador do seu espírito franciscano. Quando se encontrava de férias, foi a sua casa alvo de uma visita, não solicitada previamente, de dois membros do Sindicato de Ladrões, Larápios, Gatunos e demais Ofícios Correlativos que lhe levaram um baú que continha, não só os apetrechos da sua arte de xilografia, mas várias obras já concluídas e outras em fase de conclusão. Provavelmente porque não tinham realizado o curso final com bom aproveitamento, os membros do Sindicato tanto barulho fizeram, primeiro a arrombar a porta e, depois, a transportar o baú, que os vizinhos, assim alertados, avisaram a polícia. Fugiram os ladrões, deixando na rua o pesado baú e, avisado pelas autoridades, regressou sobressaltado a casa o nosso monsenhor. Um polícia mais curioso reparou, porém, que o baú tinha escrito na tampa a palavra RASA e perguntou ao nosso querido e santo amigo o que significava tal palavra, Ao que este, de modo tímido, respondeu: - Recomendado a Santo António!               
                                                           

 
 

 

quarta-feira, 19 de junho de 2013

À CONVERSA COM GUSTAVO CORÇÃO

                                                                          

     Há autores que não morrem. Podem tentar destruir a sua imagem, denegrir a sua obra, lançar o seu nome no poço do esquecimento. Em vão. Mais tarde ou mais cedo, hão-de ser redescobertos e então hão-de voltar ainda com maior pujança e remoçado vigor. Sucede com todos aqueles que acabam por entrar pelo seu próprio pé na História, sem ajuda de falsos críticos e de jornalistas apressados, para não falar já nestes professores dos tempos que correm e que tudo baralham e confundem, na clara intenção de, pelo barulho das luzes, esconder a sua sólida e descarada ignorância.
     Ora, um de esses escritores que o homem culto há-de ler e reler, saboreando-lhe o estilo ao mesmo tempo que enriquece e aumenta a sua cultura, é Gustavo Corção, o escritor brasileiro que me habituei a ter junto de mim, nesta minha estante reservada, com livros que me têm acompanhado, dando-me coragem para enfrentar desafios que não têm sido menores do que aqueles que o Autor enfrentou galhardamente em vida.
     Escritor de histórias pequeninas, desde À Descoberta do Outro à Conversa em Sol Menor, eis-me de novo a seguir-lhe os passos, a ler-lhe, ou melhor, a reler-lhe os livros, sentado à sua beira, como se ainda aqui estivesse, a falar comigo como um velho professor fala ao seu aluno, que neste caso não fui, mas gostava de ter sido. Toda a sua obra é como uma conversa que nos dá conta de uma vida recheada de aventuras e de episódios inesquecíveis, e sobretudo de uma extraordinária sensibilidade, uma aguda inteligência, uma sedimentada cultura e uma vivência interior que nos toca para sempre. Tudo isto num escritor que nos leva pela mão, estrada fora, como amigo de velha data. Que conta histórias do seu tempo de menino, andanças e desandanças dos inícios da sua vida profissional, encantos e desencantos de suas paixões pelos astros, pelejas e combates paulinos em defesa de valores e de princípios que o tempo não apaga e a vida nunca esquece.
     Autor de um único romance – Lições de Abismo – que emparceira com os melhores em língua portuguesa, sobressai como cronista ágil e ensaísta de nível superior. Este romance, aparentemente pessimista, pois retrata fielmente o problema da desilusão, da dor e da doença, mas também da redenção, é, pela profundidade dos temas e o modo como os trata, um romance marcante, capaz de entrar dentro de nós, de se colar ao corpo, de se entranhar na alma. Sem ser simples nem lamechas, como estes romances modernos de quiosque, que se lêem e deitam fora, e dos quais, quando muito, só se guarda, por esquecimento, o talão de compra. É, acima de tudo, a própria vida vestida de romance pela pena de um dos maiores escritores do século passado.
     Venha, pois, o leitor inteligente e amigo sentar-se aqui também para escutar a espantosa análise que Gustavo Corção nos dá do século vinte, criador de uma verdadeira comédia de erros que chegou impune e alegremente disfarçada até nós. E assim continua neste início do século vinte e um. De um tempo que, justamente, dá o título ao livro que abro agora de novo, que releio uma vez mais e compreendo em sintonia plena com o seu Autor: O Século do Nada.
     Na noite do dia 2 de Abril de 1945 Gustavo Corção foi acordado por um telefonema em que uma voz de mulher estrangeira gritou no meio de um vozeiro: - Os russos estão entrando em Berlim! Diz-nos o escritor brasileiro que, no quarto, diante de minha mesa de trabalho e do crucifixo, depois de uma breve oração deitei a cabeça nas mãos e repeti para mim mesmo como quem geme: - Os russos estão enterrando em Berlim. Uma certeza medonha e brutal apunhalou-me: perderamos a guerra. Ou melhor, perderamos a paz. Eu sentia o punhal: arrematara-se a mais hedionda conjura de traições. E começava, naquele dia de festividade monstruosamente equivocada, uma era de inimagináveis imposturas.