quarta-feira, 19 de junho de 2013

À CONVERSA COM GUSTAVO CORÇÃO

                                                                          

     Há autores que não morrem. Podem tentar destruir a sua imagem, denegrir a sua obra, lançar o seu nome no poço do esquecimento. Em vão. Mais tarde ou mais cedo, hão-de ser redescobertos e então hão-de voltar ainda com maior pujança e remoçado vigor. Sucede com todos aqueles que acabam por entrar pelo seu próprio pé na História, sem ajuda de falsos críticos e de jornalistas apressados, para não falar já nestes professores dos tempos que correm e que tudo baralham e confundem, na clara intenção de, pelo barulho das luzes, esconder a sua sólida e descarada ignorância.
     Ora, um de esses escritores que o homem culto há-de ler e reler, saboreando-lhe o estilo ao mesmo tempo que enriquece e aumenta a sua cultura, é Gustavo Corção, o escritor brasileiro que me habituei a ter junto de mim, nesta minha estante reservada, com livros que me têm acompanhado, dando-me coragem para enfrentar desafios que não têm sido menores do que aqueles que o Autor enfrentou galhardamente em vida.
     Escritor de histórias pequeninas, desde À Descoberta do Outro à Conversa em Sol Menor, eis-me de novo a seguir-lhe os passos, a ler-lhe, ou melhor, a reler-lhe os livros, sentado à sua beira, como se ainda aqui estivesse, a falar comigo como um velho professor fala ao seu aluno, que neste caso não fui, mas gostava de ter sido. Toda a sua obra é como uma conversa que nos dá conta de uma vida recheada de aventuras e de episódios inesquecíveis, e sobretudo de uma extraordinária sensibilidade, uma aguda inteligência, uma sedimentada cultura e uma vivência interior que nos toca para sempre. Tudo isto num escritor que nos leva pela mão, estrada fora, como amigo de velha data. Que conta histórias do seu tempo de menino, andanças e desandanças dos inícios da sua vida profissional, encantos e desencantos de suas paixões pelos astros, pelejas e combates paulinos em defesa de valores e de princípios que o tempo não apaga e a vida nunca esquece.
     Autor de um único romance – Lições de Abismo – que emparceira com os melhores em língua portuguesa, sobressai como cronista ágil e ensaísta de nível superior. Este romance, aparentemente pessimista, pois retrata fielmente o problema da desilusão, da dor e da doença, mas também da redenção, é, pela profundidade dos temas e o modo como os trata, um romance marcante, capaz de entrar dentro de nós, de se colar ao corpo, de se entranhar na alma. Sem ser simples nem lamechas, como estes romances modernos de quiosque, que se lêem e deitam fora, e dos quais, quando muito, só se guarda, por esquecimento, o talão de compra. É, acima de tudo, a própria vida vestida de romance pela pena de um dos maiores escritores do século passado.
     Venha, pois, o leitor inteligente e amigo sentar-se aqui também para escutar a espantosa análise que Gustavo Corção nos dá do século vinte, criador de uma verdadeira comédia de erros que chegou impune e alegremente disfarçada até nós. E assim continua neste início do século vinte e um. De um tempo que, justamente, dá o título ao livro que abro agora de novo, que releio uma vez mais e compreendo em sintonia plena com o seu Autor: O Século do Nada.
     Na noite do dia 2 de Abril de 1945 Gustavo Corção foi acordado por um telefonema em que uma voz de mulher estrangeira gritou no meio de um vozeiro: - Os russos estão entrando em Berlim! Diz-nos o escritor brasileiro que, no quarto, diante de minha mesa de trabalho e do crucifixo, depois de uma breve oração deitei a cabeça nas mãos e repeti para mim mesmo como quem geme: - Os russos estão enterrando em Berlim. Uma certeza medonha e brutal apunhalou-me: perderamos a guerra. Ou melhor, perderamos a paz. Eu sentia o punhal: arrematara-se a mais hedionda conjura de traições. E começava, naquele dia de festividade monstruosamente equivocada, uma era de inimagináveis imposturas.
                                                                       

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