domingo, 25 de agosto de 2013

Tempo de Mediocracia


 
Há épocas em que, pela vontade de Deus ou pelos desmandos dos homens, cai sobre as nações o flagelo da mediocridade. A tradição, que busca no passado as raízes do futuro, enfraquece. A dignidade nacional, por não encontrar quem a defenda, emigra. E a Pátria, ferida e exausta, cansada de enxovalhos e de calúnias, agoniza lentamente. É então que os homens acomodatícios e medíocres alcançam o poder, convertendo-se o Estado num mediocracia.

     Nesta, inverte-se a natural hierarquia de valores, falseiam-se nomes, desvirtuam-se conceitos. A sinceridade passa a ser uma idiotice; a verdade, uma loucura; a justiça, um suicídio; a admiração, uma imprudência; a paixão, uma ingenuidade; o idealismo, uma cretinice; a virtude, uma estupidez. O país tem de ser visto através das lentes de quem o governa e ai de quem tenha o arroubo do génio, a virtude do santo, a coragem do herói!

     É que os medíocres – estes ou quaisquer outros -  não têm voz, mas eco; não falam, repetem; não pensam, plagiam;  não vivem, vegetam; e nem sequer são sombra, mas penumbra. Cépticos, porque são incapazes de acreditar; modestos, porque não têm de que se vangloriar; invejosos, porque a sua vulgaridade não pode suscitar a inveja dos demais. São incapazes de servir um ideal, de tomar uma iniciativa, de sonhar com o futuro. Têm medo que os apontem a dedo, que profiram o seu nome, que alguém refira a sua existência. E vivem como contrabandistas, fazendo contrabando da própria vida.

     Acéfalos, pensam pela cabeça dos outros que seguem servilmente. Acomodatícios, mudam de opinião tantas vezes quantas as necessárias. Desonestos, mentem pública e descaradamente, vendendo se for preciso a própria honra ou fechando-a à chave, para que ninguém saiba que têm aquilo que de facto não possuem. Às vezes, esforçam-se por vestir a capa da inteligência ou por calçar os sapatos do bom senso. Em vão. São medíocres da cabeça até aos pés e não há vestuário que lhes disfarce as mazelas do corpo ou lhes distraia a pequenez do espírito.

     Mas se um dia, para desgraça das nações, conquistam o poder, logo assumem ares solenes e grandiloquentes, com discursos longos, repletos de frases rebuscadas, num tom de voz pretensamente autoritário e forte, com que intentam esconder o imenso vazio que os consome. E dizem e desdizem, e fazem e desfazem, e mandam e desmandam.

     Combatem o idealismo que não entendem, a verdade que não alcançam, a inteligência que não possuem. Deitam pela borda fora o passado que os esmaga, o presente que os repele, a História que os acusa. Fogem às responsabilidades que não assumem, às promessas que não cumprem, ao futuro que não constroem. Vivem das palavras que mastigam, das mentiras que consomem, das asneiras que vomitam. E julgam-se as luminárias deste século, os heróis da nossa Pátria, os salvadores da Humanidade.

     E ainda por cima querem que o futuro lhes reserve uma página, como se a História falasse dos medíocres.

sábado, 17 de agosto de 2013

MEDITAÇÃO SOBRE O SILÊNCIO

                                                                        
 
     Escrever sobre o silêncio é, de certo modo, um contra-senso. Menor, porém, do que falar. Porque escrever é muitas vezes refúgio de quem não quer comunicar com o próximo mas consigo mesmo, de quem não pretende dirigir-se a um público amontoado em praças repletas, mas conversar silenciosamente com o outro eu, livre de olhares indiscretos, de vozes discrepantes, de remoques grosseiros. De si para si. Sozinho e silenciosamente.

     Porque pode falar-se às multidões, indiferente ao arruído de fundo que lhes é peculiar. Mas a comunicação entre dois seres, distintos ou indistintos, entre mim e o meu amigo leitor, ou entre a minha inteligência e a minha vontade, o meu cérebro e o meu coração, requer como condimento necessário e imprescindível o silêncio. Superior silêncio, porquanto aos homens falta a única virtude que os animais possuem: a de saber calar – ou não poder falar.

     O psitacismo, a verborreia, a eloquência fácil, a retórica pedante, as bolas de sabão oratórias, a fraseologia rebuscada, as poses rococó, os discursos, as conferências, as palestras. Palavras, palavras, sempre palavras. Que moem, que cansam, que saturam. As mais das vezes, só palavras. Ocas e vazias, nada mais. Mas o homem gosta. Porque vive, alimenta-se, nutre-se de palavras. Como do pão e do vinho. E por isso só os doentes, os que estão de dieta, é que se alimentam do silêncio. Muito embora o considerem iguaria de qualidade superior ou talvez por isso mesmo.

     E como encontrará o homem o lugar onde mora o silêncio, para fugir ao palavreado constante e inútil que continuamente lhe azucrina os ouvidos, lhe fere o cérebro, lhe viola a inteligência? Esse local secreto de que falaram os antigos, foi visitado pelos modernos e agora ninguém conhece nem faz tenção de conhecer. O silêncio não tem moradia própria. Qualquer local lhe basta para reclinar sua cabeça e ouvir nossas confidências. E quando menos se espera, encontramo-lo ao dobrar uma esquina, ao subir para o autocarro, ao entrar em casa. De manhã. À tarde. Durante a noite. Pois, quer queiramos quer não, o silêncio persegue-nos continuamente, pedindo-nos para matar as palavras desnecessárias e improfícuas que saem aos repelões de nossa boca, tantas vezes incapaz de se fechar, de se calar, de colar os pedaços de saliva que uniram frases que talvez servissem para desunir os homens.

     Porque o silêncio quer andar connosco, viver connosco, acompanhar-nos a todos os locais, sem receio do incomodativo barulho das pessoas vulgares que, por medíocres, gostam de se pavonear, de dar nas vistas, de chamar a atenção, até mesmo do sossegado e calmo silêncio. É que o silêncio deve, por natural direito, habitar dentro de nós. Não na periferia do nosso ser. Não na epiderme. Mas no cerne da alma, para que nunca nos deixe. Não há maior desgraça do que ser o homem atacado de psitacismo, transformando-se num simples e palrador papagaio, descendo, assim, ao mesmo nível dos animais, mas julgando-se superior aos próprios deuses.

     Quem melhor fala é quem se cala, porque é o silêncio divino e é divina a sua linguagem. Deus fala sempre em silêncio ou, se quiserdes, através do silêncio. Neste tempo de tanta palavra lançada ao vento como pedra enraivecida, saibamos também nós, serena e confiadamente, escutar o silêncio. Divino silêncio.  

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A Menina do Futuro

A MENINA DO FUTURO


     É fim de tarde. Há menos gente na praia. Vejo um jovem casal com uma menina com um chapéu de palha e uma fitinha vermelha. Parece que está a começar a andar. Segura-a o pai pelos bracitos, não tira a mãe os olhos dela. E lá vai ela, devagarinho, pezito aqui, pezito ali, pezito aqui, pezito ali, pezito aqui, pezito ali… Ai!, catrapus! Caiu na areia. Foi-se o chapéu, roubou-o o vento. Lá vem a mãe toda aflita, não vá chorar a pequenita. Ficou sentada no chão da praia. Feliz da vida, toda contente. Brinca com a areia, sorri para a gente. Levanta-a o pai, com todo o jeito. Põe-lhe o chapéu de novo a mãe, compõe-lhe a fita. E lá vai ela pela praia fora, toda contente, toda catita, pezito aqui, pezito ali, pezito aqui, pezito ali…



     Vejo-a de longe a andar na praia. E fico a pensar que esta menina é o futuro que nós levamos também pela mão. Que nós levamos, sem darmos conta. Que nós levamos pelo tempo fora, como a menina que vai além, toda bonita, toda contente, pezito aqui, pezito ali, pezito aqui, pezito ali…