Há amigos que estão sempre
disponíveis, esperam por nós a qualquer hora, andam connosco na rua sem
vergonha e muitas vezes, quando, sentados, os trazemos ao colo como se fossem
crianças, somos nós que adormecemos, e não eles. São os livros. Mal entro em casa,
sinto-os a cumprimentar-me das estantes, com olhar grave e pose doutoral, os
autores de teses, pesadas e maçadoras, que tão úteis são para as noites de
insónia; com um sorriso discreto, como quem reencontra um velho amigo, os
escritores clássicos que contam com nova graça as velhas histórias e, por isso,
se lêem e relêem sempre com prazer; a esbracejar, querendo saltar
da prateleira e vir a correr ao meu encontro, as mais recentes aquisições,
desejosas de entabular conversa, de me dar notícias frescas, de me pôr a par
das últimas novidades.
Deixo-os a todos e sigo. Sobre a mesa de trabalho espera-me, com uma fidelidade
canina, o livro que ando a ler e que sinto vibrar de alegria quando lhe pego na
lombada e lhe viro as páginas, afagando-o com amizade e ternura.
Lembro-me, então, da tese de Marshall McLuhan, o famoso autor de A Galáxia
de Gutenberg que, nos idos de 1962, prenunciava a morte antecipada do
velho e fiel livro que, teimosa e continuamente, nos acompanha ao virar das
páginas de este livro maior que todos lemos e em que todos participamos que é o
Livro da Vida. Hoje até para os mais pequenos há falsos livros, coloridos e com
música, que os bebés folheiam no banho, a fingir que já lêem, como os adultos
fazem, mesmo os analfabetos.
Tive um amigo que vivia numa biblioteca. Ou melhor, fez da sua casa uma
autêntica biblioteca tal era a profusão de estantes e de livros que o
acompanhava, e nos acompanhava, pela casa fora. As suas conversas começavam num
livro ou nele acabavam irremediavelmente. Conversas que tinham o condão de fazer
parar o tempo, de tirar a corda aos relógios que ficavam –também eles – de
ouvido à escuta e olhos bem abertos, sequiosos de esse discurso animado e
encantatório que nos seduzia e cultivava permanentemente.
Havia nele uma relação de fidelidade amorosa com os livros que conhecia como
ninguém. Mas uma das suas grandes paixões era coleccionar livros de armar ou de
lingueta que procurava com todo o afã quando visitava as livrarias ou adquiria
em lojas especializadas que descobriu, sobretudo em Londres, e de que era
freguês habitual. Iluminava-se-lhe o rosto, com um sorriso de menino grande,
brilhando-lhe os olhos de contentamento, quando mos abria com renovado cuidado
e carinho. Era como se fosse de novo criança, com o prazer a escorregar-lhe por
entre os dedos.
No Natal, a casa era um presépio vivo em livros de armar abertos por toda a
parte. Livros de armar com presépios de papel, que se espalhavam por todo o
lado: nas mesas, nas prateleiras, em cima das estantes e até pendurados em candeeiros.
Era como entrar directamente na gruta de Belém, uma gruta de papel dentro de
livros, abertos de par em par. Um verdadeiro festim para os olhos. Porque é
pelos olhos que vemos e é pelos olhos que lemos.
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