domingo, 22 de setembro de 2013

O Prazer da Leitura





     Há amigos que estão sempre disponíveis, esperam por nós a qualquer hora, andam connosco na rua sem vergonha e muitas vezes, quando, sentados, os trazemos ao colo como se fossem crianças, somos nós que adormecemos, e não eles. São os livros. Mal entro em casa, sinto-os a cumprimentar-me das estantes, com olhar grave e pose doutoral, os autores de teses, pesadas e maçadoras, que tão úteis são para as noites de insónia; com um sorriso discreto, como quem reencontra um velho amigo, os escritores clássicos que contam com nova graça as velhas histórias e, por isso, se lêem   e relêem sempre com prazer; a esbracejar, querendo saltar da prateleira e vir a correr ao meu encontro, as mais recentes aquisições, desejosas de entabular conversa, de me dar notícias frescas, de me pôr a par das últimas novidades.
     Deixo-os a todos e sigo. Sobre a mesa de trabalho espera-me, com uma fidelidade canina, o livro que ando a ler e que sinto vibrar de alegria quando lhe pego na lombada e lhe viro as páginas, afagando-o com amizade e ternura.
     Lembro-me, então, da tese de Marshall McLuhan, o famoso autor de A Galáxia de Gutenberg que, nos idos de 1962,  prenunciava a morte antecipada do velho e fiel livro que, teimosa e continuamente, nos acompanha ao virar das páginas de este livro maior que todos lemos e em que todos participamos que é o Livro da Vida. Hoje até para os mais pequenos há falsos livros, coloridos e com música, que os bebés folheiam no banho, a fingir que já lêem, como os adultos fazem, mesmo os analfabetos.
     Tive um amigo que vivia numa biblioteca. Ou melhor, fez da sua casa uma autêntica biblioteca tal era a profusão de estantes e de livros que o acompanhava, e nos acompanhava, pela casa fora. As suas conversas começavam num livro ou nele acabavam irremediavelmente. Conversas que tinham o condão de fazer parar o tempo, de tirar a corda aos relógios que ficavam –também eles – de ouvido à escuta e olhos bem abertos, sequiosos de esse discurso animado e encantatório que nos seduzia e cultivava permanentemente.
     Havia nele uma relação de fidelidade amorosa com os livros que conhecia como ninguém. Mas uma das suas grandes paixões era coleccionar livros de armar ou de lingueta que procurava com todo o afã quando visitava as livrarias ou adquiria em lojas especializadas que descobriu, sobretudo em Londres, e de que era freguês habitual. Iluminava-se-lhe o rosto, com um sorriso de menino grande, brilhando-lhe os olhos de contentamento, quando mos abria com renovado cuidado e carinho. Era como se fosse de novo criança, com o prazer a escorregar-lhe por entre os dedos.
     No Natal, a casa era um presépio vivo em livros de armar abertos por toda a parte. Livros de armar com presépios de papel, que se espalhavam por todo o lado: nas mesas, nas prateleiras, em cima das estantes e até pendurados em candeeiros. Era como entrar directamente na gruta de Belém, uma gruta de papel dentro de livros, abertos de par em par. Um verdadeiro festim para os olhos. Porque é pelos olhos que vemos e é pelos olhos que lemos.  
    


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