segunda-feira, 28 de outubro de 2013


FRONTALIDADE  E  BOA EDUCAÇÃO


 
 
 


     Adquiri, há tempos, as actas de um colóquio, realizado em Paris  no início dos anos noventa do século passado, que versava o tema em epígrafe. Mais de uma dúzia de sábios debatia um conjunto de questões que se põem hoje a todo o homem sério e honesto sobre as regras de boa educação que desde a Paideia da velha Grécia à Humanitas da Roma antiga, passando pelos contributos renascentistas e de outros períodos históricos, chegaram até nós, e as correntes individualistas que, sobretudo após Maio de 68 e a sua infantil e contraditória expressão é proibido proibir, subverteram essas mesmas normas e criaram a falsa noção de sinceridade ou de frontalidade que tanto adorna hoje a desbocada conversa de alguns adultos que não passam, afinal, de adolescentes mal criados.

     Todos sabemos que a chamada boa educação é uma questão de berço; de criação, diz-se em português de lei. E a cultura pode, e deve, torná-la ainda mais fina e requintada. Nada perde com isso; pelo contrário, só tem a ganhar. Um homem culto é, naturalmente, um ser superior, também, e sobretudo, porque é extremamente bem educado. Aliás, as normas de boa educação devem fazer parte integrante da sua formação.

     Por isso, seria bom que de novo se ensinassem nas escolas públicas, como outrora era norma nos colégios privados, noções de cortesia, de civilidade ou de urbanidade, de bem maior utilidade prática para os nossos alunos do que algumas disciplinas esotéricas que a ninguém aproveitam e ninguém entende. Desde sempre a boa pedagogia soube defender a necessidade de incutir nos jovens as correctas normas de sã convivência social que revelassem respeito e consideração pelo próximo, evitando, assim, a linguagem agressiva e insultuosa que hoje parece ser regra e norma comum, fruto da moderna frontalidade, que os faz regressar à selva profunda, com os urros e grunhidos das manifestações a que, lamentavelmente, já estamos habituados.

     Mas não são apenas os mais novos que devem ser alvo de uma educação correcta que os torne gente civilizada. Parece que mais necessitam alguns adultos que bem ganhavam em ler, com mão diurna e nocturna, as cartas de Cícero que, com toda clareza, nos transmitem o que já os romanos sabiam: distinguir a linguagem do camponês –rusticus – da do homem bem educado que vivia na cidade -  urbanus. Conheciam, por isso, a cortesia – comitas – e a arte de ser amável, ou seja, a humanitas. Pois não lhes era então estranha a vida de sociedade – a urbanitas -, porque possuíam aquilo a que os atenienses chamavam a elegância da boa convivência.

     Mas hoje parece que a grosseria, a boçalidade e a má criação são a regra de oiro de alguns homens públicos, apoiados e até instigados por jornalistas de igual teor. A linguagem avinhada tornou-se, nalguns casos, a anormal norma com que bolsam insultos e revelam em toda a sua plenitude a falta de nível, de cultura, de inteligência e, acima de tudo, de educação. Portugal esteve, há pouco mais de um quarto de século, à beira de ficar com uma linguagem de caserna. Parece que agora caminha a passos largos para uma linguagem de taberna.

domingo, 13 de outubro de 2013


1936, ANO DA FÉ


 
 

     13 de Outubro de 2013, cidade espanhola de Tarragona. São beatificados 522 mártires, ou seja, mais de meio milhar de católicos assassinados in odium fidei, pelos republicanos e “rojos” espanhóis, em plena Guerra Civil e na zona que eles próprios controlavam, através do terror e da maior perseguição religiosa que ocorreu, em todo o século vinte, na Península Ibérica. Feroz perseguição religiosa que, para qualquer historiador sério, começou em 1931 mas ganhou foros de verdadeiro holocausto católico a partir de 1936.

     O historiador inglês Paul Johnson afirmou que “ para os republicanos a Igreja católica era o alvo principal do ódio…” Para G. Jackson, “ os primeiros três meses da guerra foram o período de máximo terror na zona republicana…. Os sacerdotes… foram as principais vítimas de puro gangsterismo.” Stantley G. Payne chegou a dizer que “ a perseguição à Igreja católica foi a maior jamais vista na Europa ocidental, inclusive nos momentos mais duros da Revolução Francesa”. E acrescenta: “ Durante a Guerra Civil o único grupo marcado para o extermínio foi o clero”. H. Thomas diz-nos também que “ possivelmente em nenhuma época da história da Europa, e provavelmente do mundo, se manifestou um ódio tão apaixonado contra a religião e tudo o que com ela está relacionado”.

     De facto, esta sistemática perseguição religiosa que, segundo outro autor – G. Hermet – reveste um carácter de verdadeiro massacre, não incidiu apenas sobre bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas, leigos comprometidos na acção pastoral ou simples fiéis que foram sumariamente executados ou vítimas de inauditos suplícios, por não renunciarem à sua fé, acreditando até à morte no seu único e verdadeiro Deus, o Deus católico, uno e trino. Mas foi também um ataque organizado contra a tradição e os símbolos religiosos, a destruição de bens culturais de valor incalculável, como bibliotecas e obras de arte, o incêndio de igrejas, a destruição de monumentos religiosos, como o monumento ao Sagrado Coração de Jesus, em Madrid – previamente “fuzilado”, antes de ser dinamitado -, e até, macabramente, a profanação de sepulturas e de cemitérios. O ódio cego à Igreja católica queria substituir a expressão de F. Nietzche, “ Deus morreu”, pela de Tatiana Goritcheva, “ Deus foi executado”.

     Em Toledo, o poeta sul-africano Roy Campbell, nesse ano da fé de 1936, viu morrer como mártires os seus amigos carmelitas que lhe tinham confiado a guarda dos preciosos manuscritos de S. João da Cruz, que mais tarde traduziu admiravelmente para inglês. Por toda a Espanha, sob o governo da Frente Popular – formado por socialistas e comunistas -, foram milhares os que tombaram nobremente, num autêntico holocausto católico, gritando, Viva Cristo Rei!, como os “cristeros” no México nos anos vinte – 1926-1929 - também eles vítimas do mesmo ódio à fé.

     E é ouvindo esse grito arrepiante, por entre o contínuo metralhar que tudo mata e destrói, esse grito que brada aos céus, que me vêm à memória os versos de Paul Claudel – do poema Aos mártires espanhóis -, como salmos que se rezam, como contas de um rosário:

     Onze bispos, dezasseis mil sacerdotes massacrados e nem uma só apostasia.

     Ah! Oxalá pudesse dar, como tú, em voz alta, um claro testemunho, no esplendor do meio-dia.

     1936 é, pois, um verdadeiro Ano da Fé. Que convém lembrar, quando se encerra o actual  Ano da Fé instituído pelo Papa emérito Bento XVI. Que convém lembrar, quando em várias partes do mundo, sobretudo em África e na Ásia, os católicos continuam a ser vítimas indefesas de esse cobarde ódio à fé. Perante o beneplácito da comunidade internacional que, muitas vezes, também o incita activamente atacando a Igreja e os seus legítimos representantes, através de mentiras e de falsidades. Cobardemente. Porque sabem que, tal como na Guerra Civil espanhola, os católicos que morrem vítimas de perseguição perdoam aos seus inimigos e, no seu último alento, ainda rezam por eles.


 

domingo, 6 de outubro de 2013


 
          
REGRESSO ÀS AULAS


 

                                                                Antigamente a escola era risonha e franca…

                                                                                                                          Acácio Antunes

     No autocarro, sentou-se ao meu lado um senhor com uma cara tão triste, tão triste, que só de olhar para ele dava vontade de chorar. E foi nesse estado de ânimo que entrei em casa, com a imagem de esse velho de bigode murcho a matraquear-me a cabeça e as lágrimas, só de me lembrar dele, a saltar-me dos olhos, como se tivesse vindo de um velório. Tinha acabado de tirar o casaco, quando senti bater à porta. Estremeci, quase sem querer, imaginando que o diacho do velho me tinha seguido, para se certificar do meu estado de ânimo e da minha capacidade de choro.

     Tive sorte. Em vez da tristeza ambulante, saiu-me na rifa um velho companheiro do saudoso Liceu D. João III, alegre e folgazão, que vinha tirar dois dedos de conversa e saber, de forma naturalmente discreta, se ainda tinha aquela garrafita de Porto, ou alguma alma gémea, que tão boa companhia nos fizera na semana passada.

     Foi um bom remédio. A tristeza foi desaparecendo à medida que se esvaziava a garrafa e ele contava histórias do tempo do liceu. Dos colegas, dos contínuos mas, sobretudo, dos professores. O professor de História era um senhor já de idade, que escrevia artigos para um jornal da terra, e dava pelo nome de um conhecido escritor italiano: o célebre autor de As minhas prisões. A rapaziada não o levava muito a sério e nos pontos escritos, sabendo de antemão que nunca os lia, aproveitava para fazer relatos de futebol, contar anedotas ou inventar histórias do arco-da-velha. À cautela, lá ia respondendo, sempre de forma vaga e difusa, à primeira questão, sobretudo na primeira página. Mas sem se esforçar muito.

     Ora sucedeu, contava entusiasmado o meu amigo, que um dia o pai foi chamado ao reitor. Na sala encontrava-se também o professor de História que se pôs a dizer que não admitia que os alunos gozassem com ele e lhe faltassem ao respeito. Dera-se o caso, verdadeiramente inédito, de ter lido todo o ponto do meu velho amigo do liceu. O desgraçado tinha respondido à segunda questão – “ Descreve as cerimónias do Feudalismo” – relatando, com grande vivacidade e abundante cópia de pormenor, o último jogo da Académica no Estádio Municipal. Achou o mestre – e muito provavelmente com razão – que a resposta era completamente inadequada e verdadeiramente anacrónica. Mas muito mais do que isso, considerou-a uma ofensa. O pai do infeliz aluno, concordando embora com o sábio professor, lá foi desculpando o rapaz, dizendo que se calhar não era só ele que respondia assim, que lesse o mestre também as outras provas… Que não! Teimava o professor. Que as tinha lido todas e só ele, e apenas ele, cometera essa afronta! E o pai do meu amigo lá tornava e retornava a pedir desculpa, acrescentando que tivesse a certeza que o seu filho não voltaria a tomar essa atitude.

     À cautela, quando chegou a casa, deu-se o mestre ao cuidado de ir, de facto, ler os outros pontos dos rapazes. E não é que então, e só então, é que se deu conta do que há anos vinham fazendo?

     Mas ainda havia mais. Vivia-se então na época de ouro das chamadas orais. O professor pegava na caderneta, esse pequeno instrumento de suplício, folheava-a, pausadamente, parando de quando em quando para ver a reacção do auditório, e disparava, de repente, um número ou um nome, que era motivo de sobressalto no visado e de alívio e de satisfação nos restantes. Ora este distraído mestre costumava anotar nas folhas da caderneta o nome da pessoa amiga que lhe recomendava os rapazes. Não se esquecia, assim, de quem lhe tinha feito o pedido e sempre era mais fácil para dar as notas no final do período. Porém, um belo dia, para espanto de toda a turma, acertando embora no número, enganou-se no nome, trocando as linhas, e, sem se aperceber do erro, disse numa voz fanhosa que se ouviu em toda a sala: “Vem hoje à lição o número cinco, Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Arcebispo-Bispo-Conde, D. Ernesto!”