sexta-feira, 8 de novembro de 2013


                     A SOLIDÃO E O SILÊNCIO


 

     Escrever é um permanente diálogo com o silêncio. Quando escrevemos também falamos, mas falamos com o silêncio que ora está sentado a nosso lado, tão discreto que quase não damos por ele, ora vagueia pela sala, ausente e distraído, como se não estivesse presente ou nem sequer existisse. E, no entanto, é ele que preenche este vazio, que o relógio a espaços assinala, em badaladas breves que o tempo, envergonhado e arrependido, logo rouba e guarda, sem delas quase darmos conta, perdidas que foram no silêncio que não chegaram sequer a acordar.

     Estar vivo é ter a noção do silêncio. E é por isso que o doente é quem mais sente o silêncio, desejando-o para se encontrar consigo mesmo ou trocando-o levianamente pelo barulho das conversas, o ruído das pessoas, a algazarra das visitas que na ânsia de falar com o doente acabam por falar apenas umas com as outras, deixando em silêncio, mas sem silêncio, o verdadeiro paciente. Fala-se demais e num tom de voz cada vez mais alto, para abafar a palavra e o pensamento alheios, com frases aguçadas e agrestes, que magoam e ferem, deixando profundas marcas que o tempo dificilmente sara e a memória raramente esquece.

     Também o amor é feito de silêncios. Da cumplicidade dos olhares que não falam, dos gestos sem ruído, dos constantes sorrisos que se trocam. Não necessitam de muitas palavras nem de elevar o tom de voz. Fala-se quase em surdina, como se de segredo permanente se tratasse, pois basta estar presente e as poucas frases que se dizem vêm sempre embrulhadas em ternura e atadas com laços de carinho. O verdadeiro amor é o que se descobre no silêncio e que nele arde lentamente, enquanto o tempo envelhece e passa. Pouco se alimenta das palavras, quase sempre desnecessárias, insuficientes e supérfluas. É um contínuo segredo, que ambos conhecem e guardam, mas de que não se fala nem desvenda a mais ninguém.

     É também o silêncio um modo de enganar o tempo. De entrar no passado às escondidas, sem ninguém ver, como quem entra no sótão das recordações e novamente descobre o que julgava perdido, num regresso ao passado em que somos, simultaneamente, actores e espectadores, vendo passar sob os nossos olhos o filme da nossa vida, que já não admite cortes nem emendas. É uma viagem que fazemos a sós, com as horas trocadas e o calendário ao contrário, jogando com o próprio tempo que nos amarra pelos pés ao presente e deixa que o coração e o pensamento se percam no passado.

     É ainda o silêncio que liga e religa as amizades. Quantas vezes se dispersam os amigos, pela fortuna da vida e pela roda do tempo, ficando anos sem se ver nem falar, mas ainda presos entre si pelo silêncio que guarda e traz de novo as recordações dos anos que fugiram, dos encontros que não voltam, das conversas que não esquecem. É o silêncio do passado que continuamente nos bate à porta da memória e nos abre o coração a um novo reencontro, real ou fictício, em que os amigos de novo se vêm e se falam, ou recordam a sós, com saudades do futuro, esse passado, silencioso mas presente, onde plantaram e viram crescer a árvore da amizade. É feito de silêncios o nosso cofre de amigos e o segredo que o abre, que só com eles partilhamos, tanto pode ser um simples telefonema, uma carta inesperada, um encontro fortuito que, num ápice, recupera os silêncios perdidos e o tempo que passou.

     Já lá vai o tempo em que as pessoas entravam nas igrejas em busca do silêncio. Do silêncio que descia da abóbada, percorria as naves e se sentava nos bancos. Do silêncio que reconfortava as almas e sossegava os corpos, longe, embora perto, do bulício das ruas, da agitação do trabalho, do ruído das gentes. Do silêncio sagrado que a todos acolhia, o crente e o descrente, o fiel e o incrédulo. Eram então as igrejas verdadeiros oásis, oásis de silêncio neste deserto da vida demasiado ruidosa e barulhenta.

     Confundem também alguns o silêncio com a solidão. Mas o silêncio não é a solidão. O silêncio fala; a solidão cala. A solidão é viver completamente só, sem passado nem futuro e sem ter a quem escutar, a quem escrever, a quem falar. É viver perdido e, mais do que isso, esquecido do mundo, das pessoas e de si próprio. Viver artificialmente, porque a vida é sempre uma conversa que se tem com outro, real ou imaginário, que nos fala e nos responde em voz alta ou em silêncio. A solidão é o prenúncio da morte; o silêncio é o prefácio da vida.  É do silêncio que tudo nasce; é na solidão que tudo acaba.

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