A
SOLIDÃO E O SILÊNCIO
Escrever é um
permanente diálogo com o silêncio. Quando escrevemos também falamos, mas
falamos com o silêncio que ora está sentado a nosso lado, tão discreto que
quase não damos por ele, ora vagueia pela sala, ausente e distraído, como se
não estivesse presente ou nem sequer existisse. E, no entanto, é ele que
preenche este vazio, que o relógio a espaços assinala, em badaladas breves que
o tempo, envergonhado e arrependido, logo rouba e guarda, sem delas quase
darmos conta, perdidas que foram no silêncio que não chegaram sequer a acordar.
Estar vivo é ter a
noção do silêncio. E é por isso que o doente é quem mais sente o silêncio,
desejando-o para se encontrar consigo mesmo ou trocando-o levianamente pelo
barulho das conversas, o ruído das pessoas, a algazarra das visitas que na
ânsia de falar com o doente acabam por falar apenas umas com as outras,
deixando em silêncio, mas sem silêncio, o verdadeiro paciente. Fala-se demais e
num tom de voz cada vez mais alto, para abafar a palavra e o pensamento alheios,
com frases aguçadas e agrestes, que magoam e ferem, deixando profundas marcas
que o tempo dificilmente sara e a memória raramente esquece.
Também o amor é
feito de silêncios. Da cumplicidade dos olhares que não falam, dos gestos sem
ruído, dos constantes sorrisos que se trocam. Não necessitam de muitas palavras
nem de elevar o tom de voz. Fala-se quase em surdina, como se de segredo
permanente se tratasse, pois basta estar presente e as poucas frases que se
dizem vêm sempre embrulhadas em ternura e atadas com laços de carinho. O
verdadeiro amor é o que se descobre no silêncio e que nele arde lentamente,
enquanto o tempo envelhece e passa. Pouco se alimenta das palavras, quase
sempre desnecessárias, insuficientes e supérfluas. É um contínuo segredo, que
ambos conhecem e guardam, mas de que não se fala nem desvenda a mais ninguém.
É também o
silêncio um modo de enganar o tempo. De entrar no passado às escondidas, sem
ninguém ver, como quem entra no sótão das recordações e novamente descobre o
que julgava perdido, num regresso ao passado em que somos, simultaneamente,
actores e espectadores, vendo passar sob os nossos olhos o filme da nossa vida,
que já não admite cortes nem emendas. É uma viagem que fazemos a sós, com as
horas trocadas e o calendário ao contrário, jogando com o próprio tempo que nos
amarra pelos pés ao presente e deixa que o coração e o pensamento se percam no
passado.
É ainda o silêncio
que liga e religa as amizades. Quantas vezes se dispersam os amigos, pela
fortuna da vida e pela roda do tempo, ficando anos sem se ver nem falar, mas
ainda presos entre si pelo silêncio que guarda e traz de novo as recordações
dos anos que fugiram, dos encontros que não voltam, das conversas que não
esquecem. É o silêncio do passado que continuamente nos bate à porta da memória
e nos abre o coração a um novo reencontro, real ou fictício, em que os amigos
de novo se vêm e se falam, ou recordam a sós, com saudades do futuro, esse
passado, silencioso mas presente, onde plantaram e viram crescer a árvore da
amizade. É feito de silêncios o nosso cofre de amigos e o segredo que o abre,
que só com eles partilhamos, tanto pode ser um simples telefonema, uma carta
inesperada, um encontro fortuito que, num ápice, recupera os silêncios perdidos
e o tempo que passou.
Já lá vai o tempo
em que as pessoas entravam nas igrejas em busca do silêncio. Do silêncio que
descia da abóbada, percorria as naves e se sentava nos bancos. Do silêncio que
reconfortava as almas e sossegava os corpos, longe, embora perto, do bulício
das ruas, da agitação do trabalho, do ruído das gentes. Do silêncio sagrado que
a todos acolhia, o crente e o descrente, o fiel e o incrédulo. Eram então as
igrejas verdadeiros oásis, oásis de silêncio neste deserto da vida demasiado
ruidosa e barulhenta.
Confundem também
alguns o silêncio com a solidão. Mas o silêncio não é a solidão. O silêncio
fala; a solidão cala. A solidão é viver completamente só, sem passado nem
futuro e sem ter a quem escutar, a quem escrever, a quem falar. É viver perdido
e, mais do que isso, esquecido do mundo, das pessoas e de si próprio. Viver
artificialmente, porque a vida é sempre uma conversa que se tem com outro, real
ou imaginário, que nos fala e nos responde em voz alta ou em silêncio. A
solidão é o prenúncio da morte; o silêncio é o prefácio da vida. É do silêncio que tudo nasce; é na solidão
que tudo acaba.
O silêncio é de ouro!
ResponderEliminarA solidão é amarga...