domingo, 28 de julho de 2013

À Sombra de Tomaz de Figueiredo

  
 

     Dizem que se deve beber muita água nestes dias em que o calor aperta e o Sol queima mais. Que a cultura é como água fresca e cristalina, a jorrar das sombreadas fontes, e que tão bem nos sabe quando o mercúrio trepa nos termómetros, muito lesto e gaiteiro, a pedir roupas leves e serenidade e calma no andar, espaçado e lento, mais recolhido à sombra do que ao Sol. Tem a cultura a pureza da água que gulosamente se bebe e que percorre veloz o nosso corpo numa viagem de vida e de prazer que mata a sede e o cansaço afasta. Se temos de beber muita água, temos também de ter a cultura sempre à mão, cristal de primeira água, levando-a connosco para nos dessedentar da estupidez que nos abafa, da ignorância que ferve, da burrice que queima.
     Sigo, por isso, religiosamente a prescrição médica e vou ter com Tomaz de Figueiredo em busca de essa água límpida e pura que sai a borbotar dos seus livros e que bebo em copázios de meio quartilho, daqueles antigos, que na minha infância no Minho vi, e me levam, com ele e nele, de volta a essas terras de boa gente e sólidos ares que a peste da politiquice ainda não destruiu de todo.
     Quem não gostava de passar uns dias numa casa antiga e bem portuguesa, de mesa farta e de amizade fraterna e franca, conversadeira e descuidada, sem curar do tempo, que só por algumas velhas fisgas das portas, a medo, se escoa, também ele aí amesendado, nessa casa que tão bem conhece, e onde parece que a espaço vemos embalado nessa cadeira de baloiço, estimada herança do avô de quem todos se lembram e de quem todos falam? Venha daí comigo, leitor atento e amigo, e não se preocupe com a bagagem, o transporte, ou a própria viagem que pode parecer cansativa e longa, pois, como vai ver, nada custa e bem agradável se torna. Basta-lhe apenas pegar num livro, ou melhor, em dois, já que não creio, e com toda a honestidade o digo, que depois de ler o primeiro não fique aguado por não ler o segundo.
     Mas não pense o leitor que A Toca do Lobo, pois é esta obra que tenho entre mãos é – e aqui desdigo o meu amigo Tomaz – um “romance estático”, isto é, parado. Faça o favor de ler comigo e dê-se conta da vida que percorre as suas páginas, das aventuras em que nos faz participar, do permanente contacto com a Natureza em que estamos envolvidos, levados sempre, de escantilhão, pelo Autor. Logo a abrir, nesta pequena citação: “ Caçar, pescar, escrever no intervalo algumas páginas de memórias – ferro em brasa… -, ler algum livro ou reler algum antigo: reler e reler o Padre António Vieira, seu professor da Fé e seu professor de Indignação. De mês a mês, algum capítulo mais do livro que tanto ambicionava acabar – que tinha de acabar! – sobre a lição de homem livre que através a vida e obra o excelso jesuíta legara. A leitura do Padre António Vieira levava-o até a ranger os dentes de entusiamo e de fúria. (Prenderam-se os pastores e soltaram-se os lobos, e não tem Cristo quem acuda pelo seu rebanho. – Se eu escarrara vermelho e me deixaram falar claro, dera por bem empregado o sangue. – Até a esperança se nos tolhe, que é o último alívio que ninguém tirou, na mais triste fortuna, aos mais desafortunados. – Sobre as obrigações do vassalo, tenho as que devo aos mortos e as que devo aos vivos. – Os que têm nome e baptismo de cristãos, muitos o receberam sem saber o que recebiam.- Como temo que a babilónia Europeia seja Babilónia na confusão, não o sendo nos muros nem nos defensores. – É necessário governarmo-nos com a espada sempre na cinta e com a balança na mão, pesando os poderes de todos os príncipes e fiando-nos só do próprio. – Das felicidades que Deus tem aparelhadas a Portugal estou sempre certo, com a mesma firmeza, mas, antes delas, não sei se nos quererá Deus purificar com algum açoite, pois nós não o fazemos com a emenda.)
     “Que espantoso capitão de almas, o Padre António Vieira!”
     E que espantoso escritor, no verdadeiro sentido da palavra, de causar permanentemente espanto – e alegria – não é também Tomaz de Figueiredo! Peço-lhe desculpa, porém, de com esta citação gorda lhe ter interrompido a leitura de A Toca do Lobo. Voltemos à velha casa que respira por dentro os ares sadios e fortes de uma criação nobre e antiga, cujas histórias não podemos deixar de ouvir, trazidas continuamente à memória do escritor.  E não digo que nos sentemos, porque Tomaz de Figueiredo não nos dá tréguas nas aventuras em que nos leva a reboque, nas caçadas por montes e vales e na pesca de essa belíssima truta com quem eu tanto gostava- e se calhar também o meu amigo leitor – de ter uma saborosa conversa, à mesa, no prato, nem que fosse de esmalte e o garfo de ferro, a condizer…
     Quando acabar a leitura de este romance, busque logo outro do mesmo criador de estas figuras que, a partir de agora, fazem também parte de todos nós: Uma noite na Toca do Lobo.  E não se amofine se por lá aparecer a prima D. Maria do Socorro, com o seu cosmorama. Entre no jogo e participe na conversa que a prima, velha solteirona, nos traz, a propósito das famosas vistas do cosmorama que o falecido mano mercara em Paris. Também eu um dia, em Madrid, encontrei num antiquário um cosmorama. E, depois de ter contado e recontado o dinheiro que levava, avancei, todo lesto, para mercar o objecto, desejoso de com ele entrar daí a dias no velho Café Aviz, aos Restauradores, e dizer, ufano, ao Tomaz que tinha, como a prima do Diogo, um cosmorama. Mas lembrou-me o coração que Tomaz de Figueiredo já estava, há vários anos, a ver outros cosmoramas. “Não lho prometia a tia Mariana, pouco antes de morrer? (Olha que tens de ir para o Céu, nem que seja preciso eu vir de lá puxar-te por um braço!)
     E o cosmorama ficou na Calle Arenal.




sábado, 6 de julho de 2013

As Novas Índias


               

 


     A viagem é sempre uma descoberta e a descoberta implica sempre uma viagem. Viagem iniciática, reservada apenas a alguns, poucos e escolhidos, sejam pessoas ou nações que percebem e se apercebem das verdadeiras razões da descoberta e por isso estão para além do que os sentidos comuns vêem ou a razão humana entende. Há sempre algo de misterioso e de sagrado na descoberta, no descobrimento de novas terras, novas gentes e, mais do que isso, novas estrelas e céus, que é como quem diz, novos tempos e espaços.

     O Infante D. Henrique, Mestre da Ordem de Cristo, herdeira da Ordem dos Templários, o manuelino e toda a sua riquíssima simbologia, a Nau e o Graal, de que nos fala Dalila Pereira da Costa, ou a descoberta do caminho, do verdadeiro e único caminho marítimo para a Índia, dos irmãos Gama ( Vasco e Paulo) ligados à Ordem de Santiago, e cuja frota, a frota dos arcanjos, deixa o Tejo a 8 de Julho de 1497, tudo tem profundo carácter simbólico.

     Vejamos apenas o simbolismo da descoberta do caminho marítimo para a Índia, ambição suprema do monarca português. Vasco comanda a nau S. Gabriel, Paulo da Gama, a S. Rafael, Nicolau Coelho, a Bérrio, talvez uma caravela, e Gonçalo Nunes, um navio de víveres que devia ser queimado no decorrer da viagem.  A frota era assim constituída por três arcanjos: S. Rafael, S. Gabriel e Bérrio, o arcanjo inominado, pois a palavra bérrio, entretanto caída em desuso, significava então arcanjo.

     O arcanjo Gabriel, cujo nome significa “fortaleza de Deus”, é o guardião do tesouro celeste, o Anjo da Redenção e o supremo mensageiro de Deus. É o Anjo da Anunciação e do Nascimento, pois anunciou à Virgem que seria a Mãe do Salvador. Deu o nome à nau que anunciaria a descoberta do novo caminho que daria origem também a uma nova era: a era pós-gâmica, como lhe chamou o historiador britânico Arnold Toynbee.

     O arcanjo Rafael, cujo nome significa “remédio de Deus”, é o chefe dos anjos custódios e o anjo custódio – isto é, o anjo da guarda – de toda a humanidade. Está iconograficamente associado a Tobias, a quem devolve a vista, e assume muitas vezes a imagem de um peregrino com o bordão e a vieira características. É ele que abre os olhos aos navegadores portugueses, ensina o caminho e os acompanha na viagem peregrinação, viagem simbólica que lança a ponte entre o mundo que ora acaba e outro que aos poucos já desperta. Misto de cavaleiro medieval e de homem moderno que satisfez a grande aspiração de El-Rei D. Manuel I.

     Mais de cinco séculos depois há agora outras índias à nossa espera. E eu vou também, embarcado nas largas asas dos arcanjos à procura da alma portuguesa que está hoje de novo pelo mundo em pedaços repartida. E entro, à sombra dos arcanjos, nas ondas de este mar, tumultuoso e traiçoeiro, que os velhos do Restelo, que são agora garotos e fedelhos, não querem que seja, como outrora, nosso e português. Definitivamente, não fico, comodamente na praia a ver os outros partir. Mas singro neste mar, sempre pelas mãos protectoras dos arcanjos, neste mar alteroso, de vagas fortes e carnívoras, que tudo comem e levam; neste mar que é também um mar interior, feito de trabalhos sem fim e de sacrifícios sem conta, olhos postos no gajeiro que lá do alto perscruta o vasto horizonte que a sua experimentada vista alcança, com o coração desejoso e alvoraçado de poder gritar de vez a todos nós: Cabo da Boa Esperança!

     É neste mar que eu navego; é nestes barcos que eu vou.