domingo, 29 de setembro de 2013

O VALOR DA MEMORABILIA



 

     No final dos anos cinquenta do século passado foi publicado em França um livro de Maurice Rheims sobre o coleccionismo que rapidamente se tornou famoso. Intitulava-se A estranha vida dos objectos e ia ao encontro do gosto de coleccionar, do bichinho de guardar peças de memorabilia ou simples recordações de viagens que, quase como uma doença, entrou nas melhores famílias e passou, com naturalidade, a fazer parte da vida de quase todos nós, transformando as nossas casas em álbuns de recordações.

     Também a minha casa é um álbum. Espalhadas por móveis e paredes há recordações de viagens e de amigos, de velhos parentes que quase não conheci e de figuras históricas que do passado vieram ter comigo para assim penetrar alegres nos umbrais do futuro. Fazemo-nos boa companhia. E ora falo com uns, ora converso com outros, como se os visitasse na sua própria casa e não na minha. Têm todos o seu cantinho, o seu espaço próprio, a sua zona residencial. Quando lá chego, não bato à porta nem peço licença para entrar, mas sinto-me como se vivesse noutro lugar e noutro tempo: sinto mesmo no ar um microclima, carregado de sentimentos e de profundas emoções.

     A minha casa é um álbum. Viro a esquina do corredor como quem desfolha páginas, pois cada parede traz consigo miríades de imagens que se escondem por detrás de uma fotografia, de um relógio, de um prato, de uma gravura antiga. E em cima de cada móvel há objectos que contam histórias sem cessar, lembram rostos que não esquecem, paisagens deslumbrantes, viagens sem ter fim.

     A minha casa é como um álbum vitoriano. Tenho necessidade de povoar todo o meu espaço de objectos que me digam alguma coisa, que embora inertes tenham vida, que tragam dentro de si alguma história e passem serões de inverno ou tardes cálidas de verão a falar para mim, a fazer-me companhia. Quando olho para todos eles, espalhados quase ao acaso por móveis e recantos, lembro-me de pessoas e de locais, vêm-me à memória dias precisos e horas certas, como se tivesse sido há pouco, momentos antes de entrar em casa. É que a nossa vida é um mosaico, feito de pedaços que só nós próprios sabemos encaixar.

     A minha casa é um álbum. Precioso álbum que só eu conheço e de que sei o significado. Precioso álbum que guardo a todo o custo, como criança adulta que não quer perder tantos sonhos passados e futuros. Mas mais do que dormir com ele, bem agarrado, debaixo dos lençóis, para que ninguém mo tire, vivo com ele e dentro dele. Tanto faço parte dele como ele faz parte de mim. A minha casa é um álbum.
 
 

domingo, 22 de setembro de 2013

O Prazer da Leitura





     Há amigos que estão sempre disponíveis, esperam por nós a qualquer hora, andam connosco na rua sem vergonha e muitas vezes, quando, sentados, os trazemos ao colo como se fossem crianças, somos nós que adormecemos, e não eles. São os livros. Mal entro em casa, sinto-os a cumprimentar-me das estantes, com olhar grave e pose doutoral, os autores de teses, pesadas e maçadoras, que tão úteis são para as noites de insónia; com um sorriso discreto, como quem reencontra um velho amigo, os escritores clássicos que contam com nova graça as velhas histórias e, por isso, se lêem   e relêem sempre com prazer; a esbracejar, querendo saltar da prateleira e vir a correr ao meu encontro, as mais recentes aquisições, desejosas de entabular conversa, de me dar notícias frescas, de me pôr a par das últimas novidades.
     Deixo-os a todos e sigo. Sobre a mesa de trabalho espera-me, com uma fidelidade canina, o livro que ando a ler e que sinto vibrar de alegria quando lhe pego na lombada e lhe viro as páginas, afagando-o com amizade e ternura.
     Lembro-me, então, da tese de Marshall McLuhan, o famoso autor de A Galáxia de Gutenberg que, nos idos de 1962,  prenunciava a morte antecipada do velho e fiel livro que, teimosa e continuamente, nos acompanha ao virar das páginas de este livro maior que todos lemos e em que todos participamos que é o Livro da Vida. Hoje até para os mais pequenos há falsos livros, coloridos e com música, que os bebés folheiam no banho, a fingir que já lêem, como os adultos fazem, mesmo os analfabetos.
     Tive um amigo que vivia numa biblioteca. Ou melhor, fez da sua casa uma autêntica biblioteca tal era a profusão de estantes e de livros que o acompanhava, e nos acompanhava, pela casa fora. As suas conversas começavam num livro ou nele acabavam irremediavelmente. Conversas que tinham o condão de fazer parar o tempo, de tirar a corda aos relógios que ficavam –também eles – de ouvido à escuta e olhos bem abertos, sequiosos de esse discurso animado e encantatório que nos seduzia e cultivava permanentemente.
     Havia nele uma relação de fidelidade amorosa com os livros que conhecia como ninguém. Mas uma das suas grandes paixões era coleccionar livros de armar ou de lingueta que procurava com todo o afã quando visitava as livrarias ou adquiria em lojas especializadas que descobriu, sobretudo em Londres, e de que era freguês habitual. Iluminava-se-lhe o rosto, com um sorriso de menino grande, brilhando-lhe os olhos de contentamento, quando mos abria com renovado cuidado e carinho. Era como se fosse de novo criança, com o prazer a escorregar-lhe por entre os dedos.
     No Natal, a casa era um presépio vivo em livros de armar abertos por toda a parte. Livros de armar com presépios de papel, que se espalhavam por todo o lado: nas mesas, nas prateleiras, em cima das estantes e até pendurados em candeeiros. Era como entrar directamente na gruta de Belém, uma gruta de papel dentro de livros, abertos de par em par. Um verdadeiro festim para os olhos. Porque é pelos olhos que vemos e é pelos olhos que lemos.  
    


sexta-feira, 13 de setembro de 2013

UM ESCRITOR PROIBIDO


 


     Peço ao leitor, benevolente e amigo, que encoste a porta e não acenda a luz, pois vou falar-lhe hoje de um escritor proibido. Proibido apenas entre nós, em nome de uma cultura pequenina e rasteira, que mal se vê porque não cresce e não cresce para que não se veja. Falo de um notável escritor romeno, praticamente desconhecido pelos nossos diligentes e apressados intelectuais, autor de um livro inesquecível e verdadeiramente arrebatador: O Diário da Felicidade, de Nicolae Steinhardt (1912-1989).

     A felicidade, descobriu-a Nicolae Steinhardt no seu lugar de origem, dentro de si mesmo, naquilo a que Ollé-Laprune chamou as fontes da paz intelectual, quando viajava de prisão em prisão, no universo concentracionário romeno do período comunista. E relata-nos essa viagem, sem rumo nem destino, em que nunca perdeu a dignidade, nem traiu companheiros, nem amigos, nem guardou rancor, nem alimentou qualquer espírito de vingança. Num diário escrito, naturalmente, a posteriori, pois nunca lhe foi permitido o uso de papel e de lápis. Num diário sem sequência cronológica, apenas de memória, mas de uma riqueza cultural e humana verdadeiramente admirável.

     É certo que não há uma norma para a redacção de um diário, mas o livro de Nicolae Steinhardt é também uma autêntica história da cultura em que se cruzam livros, escritores, poetas, músicos, artistas, não só romenos mas de toda a cultura e que servem de tema e viva discussão entre aqueles que habitam transitoriamente a mesma cela. Espantosa cultura que o Autor revela e no-la transmite serenamente como se estivesse ainda sentado na carcomida tarimba de uma triste e miserável prisão. Uma obra digna e comovente, a que não faltam traços de fino humor, que a superior personalidade do escritor romeno deixa por vezes escapar por entre um sorriso maroto que lhe escorrega dos olhos e foge até nós por entre as grades da própria cela.

     Pois esta obra, meu caro leitor atento e amigo, foi naturalmente apreendida e sofreu nova redacção, pacientemente refeita pelo escritor romeno, de origem judia, que na prisão se converteu ao Cristianismo, tendo recolhido mais tarde a um convento ortodoxo. Aí lhe apreendeu a Securitate o manuscrito que, entretanto, já tinha sido enviado a bom recato.

     A sua publicação, em 1991, na Roménia, obteve um êxito extraordinário com uma tiragem de 200.00 exemplares. Traduzido imediatamente em várias línguas ( francês, italiano, hebraico, húngaro, grego, castelhano, português (Brasil), inglês, etc. ) viu as suas edições esgotarem-se rapidamente, tornando-se, obviamente, numa obra de referência da cultura romena e ocidental. Nicolae Steinhardt pertenceu a uma geração de grandes intelectuais romenos, bem conhecidos no Ocidente, como Constantin Noica, Mircea Eliade, Emil Cioran, Eugen Ionesco, Vintila Horia, Virgil Bulat e tantos outros.

     Entre nós, amigo comum, conseguiu há anos, através do Instituto Cultural Romeno em Lisboa, obter do Mosteiro de Rohia, que detinha os direitos de autor do escritor romeno, autorização para a publicação da obra numa conhecida editora portuguesa. Mas o director da colecção a que se destinava O Diário da Felicidade, um Importante de Melo, quando viu que Nicolae Steinhardt era um escritor de superior cultura e, por isso e só por isso, tinha sido vítima da perseguição comunista, recuou corajosamente. Ficámos, assim, sem uma edição portuguesa.

     Resta, ao leitor interessado e amigo, a edição brasileira, se a conseguir adquirir, pois está praticamente esgotada. Aquando da sua edição, foi O Diário da Felicidade considerado o livro do ano no Brasil.  Naturalmente. Unanimemente elogiado pela crítica internacional que nele viu uma verdadeira obra-prima ou, no dizer do crítico romeno Dan Chelaru, “ um livro contemporâneo de Deus”, foi, pelo Importante de Melo, proibido entre nós.

     Assim vai a cultura em Portugal.